terça-feira, 30 de dezembro de 2014

João Ribeiro - "Ódios problemáticos"

Meu caro colega Múcio Leão,
Pede-me o amigo, com grande maldade numa das suas admiráveis crônicas, que eu explique as razões sutis e profundas do ódio do Sr. Almáquio Diniz, ódio tão mal empregado em minha pessoa.
É muito difícil varar o intermúndio que separa uma alma de outra. Que sabemos nós dos sentimentos alheios?
A palavra é a primeira e inevitável hipocrisia do pensamento. Não há que fiar de ditos e razões.
Quando me vejo abarbado com esses casos difíceis, lanço mão de um recurso único, o cálculo das probabilidades.
Segundo as minhas tabelas, Almáquio é meu amigo e não me treme a pena escrevendo que ele é um dos meus admiradores.
Tudo prova que ele queria e merecia a minha estima.
Houve um malentendu numa misérrima questão eleitoral e acadêmica. A Academia é um gérmen de perigosas discussões literárias.
Outrora, escrevia-me sempre. Queria ouvir-me em todos os seus projetos.
Nunca ele escreveu livro, ou folheto, que não remetesse à minha atenção e ainda até este momento não quis interromper a assiduidade das suas visitas de papel.
Confesso que às vezes tenho folheado os volumes do homem, à procura de uma página reparadora. Mas, de repente, entro a abrir a boca, de tédio e de sono.
Não é que os ache desprezíveis; a verdade é que leio muito pouco, mas reconheço que são medicinais os bons livros hipnotizantes, que podiam ser utilizados em certas injeções raquidianas.
Essa propriedade papaverácea é comum na literatura nacional.
O exibicionismo é que faz dormir aos mais vigilantes e insones. O doutor Almáquio exibe dedicatórias triviais de reciprocidade a pretexto de psicologia, divulga os bilhetes postais da gente descuidosa e agradecida das suas remessas, cita mais que um meirinho, alega autores tchecos e eslovacos, inauditos, como seja Wallaschek, Esch, Harpzenrath… que na minha ingenuidade sempre tomei por fabricantes de biscoitos, nomeados em algum livro de endereços mundiais.
De quem, senão dele, a culpa?
Já há muitos anos, estava eu metido no meu canto, longe da imprensa abominável, e apenas dirigindo o “Almanaque Garnier”, quando (creio que foi o Sr. Fábio Luz, hoje bolchevique) me recomendaram a colaboração do Sr. Almáquio Diniz.
Achei boa a lembrança, e logo descobri uma analogia simpática entre Almáquio e Almanaque.
Essa veemente sugestão verbal parecia dispensar outros auspícios propiciatórios.
O homem estava na Bahia, destilava e pingava de longe a sua perpétua literatura, e exercia proveitosa crítica sobre os livros que lhe chegavam “das quatro partes do mundo”, como ele diz.
Cercava-o o respeito universal. Lá da Amazônia, escrevia o abalizado e conhecidíssimo Sr. Curcino da Silva que Almáquio havia de ser o “crítico de maior valor do Brasil”.
Enquanto, na Bahia, enviou-me uma espécie de romance – Os Pavões.
Agradeci num bilhete postal, dizendo-lhe que o livro era excelente.
O homem foi ao dicionário de Figueiredo, assim confessa, e verificou que excelente é coisa boa e superior. E registrou, para atirar-me em rosto, esse juízo crítico.
Ora, eu não podia grosseiramente acusar a gentileza da oferta, dizendo que ela valia pouca coisa ou coisa nenhuma.
Veja, pois, o meu amigo a segurança dessa probabilidade de estima. O homem rejubilou-se com aquela excelência por via postal. Se eu achei o livro excelente, logo, era amigo e admirador.
Não me custava dizê-lo, tanto melhor quanto nunca li os Pavões (por aquele maldito costume de abrir a boca, etc). Dizendo que era excelente, de uma só cajadada evitava uma injustiça possível e a soneca provável.
O Sr. Almáquio Diniz, sem meu conselho, foi quatro vezes candidato derrotado da Academia de Letras.
Aqui está a origem do falso ódio. É coisa razoável?
Foi derrotado naturalmente pela maioria, e eu não sou a maioria. Pelo contrário; sou a menos representativa de todas as pessoas do cenáculo acadêmico.
Não quero, pois, absorver o prestígio que me dá esse capítulo de descomposturas. Faça-me o doutor Almáquio o favor de passá-las adiante a quem de direito, em segunda edição mais correta.
Essa demorada e larga hospedagem que me deu no – Ódios e Afetos – é sinal de consideração. Eis, pois, uma probabilidade nova em favor da estima que me consagra o doutor Almáquio.
Numa de suas viagens eleitorais, veio este notável escritor a conhecer-me no Garnier. Conversamos; tive boa impressão do Almáquio, ele diz que teve péssima da minha pessoa (pode ser verdade), e diz ainda que me atirou alguns motejos e flauteios que, por estúpido, não compreendi (e isso deve ser inocente mentira).
Não é provável que um galopim, que andava a pedir votos, se atrevesse a tão arriscado desporto. Provavelmente, o Almáquio fez algumas zumbaias triviais para me arrancar o voto com a lábia de todos os galopins. Com a notícia da derrota, deu-se a perros e substituiu por flauteios as lamúrias de pedinte.
É sabido que, nessa nossa mistura de raças, há um grão étnico que se distingue pela “pabulagem”. Na Bahia, donde é o termo, os pabos ou pabulos não tem conta.
O – pabo – depois de elogiar, quando lhe saem as coisas pelo avesso, diz que o elogio foi apenas uma pilhéria.
Mas, para mim, toda a literatura almaquiana é uniformemente pilhérica. Tenho também a minha pabulagem.
_____

A razão errada e exagerada do ódio de Almáquio, já se vê, consiste em haver contado com o meu voto, inconsideradamente.
Naquela ocasião, o Almáquio concorria com Afrânio Peixoto, com quem (consultadas as minhas tabelas de probabilidades), não tinha senão relações de cortesia.
Ambos eram rivais de pretensão e de literatura; ambos fizeram as suas estréias no nefelibatismo bahiense; Afrânio escreveu a Rosa Mística e Almáquio o Sê bem dita!
Graças a Deus, nunca li semelhantes narcóticos, que me deixariam ainda agora desacordado.
Como eram ambos antigos companheiros, êmulos da mesma literatura, é natural que a rivalidade os estimulasse a uma prova decisiva. Afrânio ou Almáquio?
Pode ser que fosse flauteio desta vez. Imaginem que o homem organizou uma estatística dos méritos dele e do seu rival, fixando-os em números, da seguinte maneira:
Talento – Afrânio – 272
                 Almáquio – 530
Ciência – Afrânio – 615
                 Almáquio – 675
Caráter – Afrânio – 6
                 Almáquio – 788
Estilo – Afrânio – 104
             Almáquio – 105

.   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   .   

Sou e sempre fui supersticioso; e atento a cabala e o esoterismo desses números, fique pensativo.
Quem sabe (pensava eu), se isso não era certo na eternidade?
Cá embaixo, porém, os números estavam errados e o caso era de evidente delírio. Passaria eu por mentiroso se não tivesse mostrado esses números fatídicos a alguns amigos.
Hoje, estou convencido de que o Almáquio burlou a minha ingenuidade.
Flauteou-me, certamente, mas sem se esquecer de alegar que os méritos de Afrânio somavam 1500, ao passo que os dele subiam a 3 mil e pico.
Por incorrigível estupidez, votei no Afrânio.
_____

Meu caro colega,
A humanidade é extraordinária, absurda e inverossímil. Digo, como aquele sujeito, que estamos atrasados alguns séculos.
O Almáquio flauteou-me; mas também não votei nele e nem creio no seu ódio.
Se Almáquio escrever novo capítulo de arrependimento, posso assegurar-lhe que darei o meu voto a esse estimável inimigo.
A penitência há de ser feita sem traje de rigor (coisa difícil para o estupendo chique do nosso Brummel).
Apenas tenho certos receios do elogio. Se ele escreveu que Locke influiu na poesia de Alberto de Oliveira, que demônio de gênio será o inspirador das minhas prosas?
Creia-me sempre seu.


Gazeta de Notícias, 27 de fevereiro de 1923.

Artur Azevedo - "Pobre liberais"









segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Urbano Duarte

Urbano Duarte de Oliveira (1885-1902). Utilizava na seção "Humorismos” d’O Paiz o pseudônimo de J. Guerra.



Bom assunto para uma monografia, nesta quadra duplamente febril que atravessamos, é o seguinte: Psicologia da adulação.
Os filósofos aí encontrarão fértil tema para cogitações profundas sobre a natureza humana, e os literatos poderão emoldura-los nas mais arredondadas frases. Isto no caso de ainda haver algum filósofo ou literato que não esteja também incorporando: – porquanto atualmente no Rio de Janeiro só conheço três espécies de gente: os que incorporaram, os que estão incorporando e os que pretendem incorporar. Há mais incorporadores do que havia comendadores.
Como dizia, magnífico assunto é a psicologia da adulação.
O padre Vieira consigna mil estratagemas e processos na sua arte de furtar; pois um tratado sobre a arte de adular deve registrar mil e um sistemas diferentes.
Nos tempos da... (esqueci-me do adjetivo... Ah! agora me lembro!) da ominosa monarquia (ominosa não, nefanda é mais energético) da nefanda monarquia, naquelas eras sinistras e execráveis mergulhadas na noite caliginosa da tirania e da corrupção (pausa)... Naquela pavorosa quadra da nossa vida política!!! durante a qual!!! todos os caracteres apodreceram!!! durante a qual!!! a liberdade era um sonho de loucos!!! durante a qual!!! a moralidade administrativa era uma burla, os governos eram sindicatos, o direito e a justiça apanágio dos poderosos!!! durante a qual!!! (conserto a gola e limpo o suor) prendia-se um pobre homem por ter furtado um queijo!!! processava-se outro por haver falsificado uma firma!!! demitia-se um escriturário só por escrever hoje sem h!!!... (Diabo! Com esta minha mania de fazer discurso, já não sei o que queria dizer) Ah! cá está o fio.
Naqueles tempos adulava-se muito, mas adulava-se mal.
Com a mudança de regime, a arte tomou novos moldes e progrediu assombrosamente, como tudo mais. Muito progresso e também muita ordem. O adulador de raça sabe fazer as coisas com discrição, com astúcia, e chega ao seu fim com uma precisão matemática. Toma por alvo o amor próprio do seu graúdo ou ricaço, e espera com heróica paciência até vê-lo rendido às blandícias. Nada o afugenta, nada o perturba, nada o desanima. A um gesto de repulsa que equivale a um pontapé moral, ele responde com um sorriso de agradecimento.
No dia seguinte, para se vingar, envia aos a pedido uma loa entusiástica às cem virtudes do seu alvo, concluindo por pedir desculpa se ofende a sua proverbial modéstia. O artigo é anônimo. O alvo fica intrigado por saber qual o bom amigo que de vez em quando gasta a sua meia pataca para o elogiar.
Mas o adulador de raça não se acusa, diz que ignora e pede mesmo às redações para mantê-lo no mais rigoroso incógnito. Deseja que o alvo o descubra por si mesmo, depois, a fim de as suas meias patacas de elogio se transformem em contos de réis de gratidão.
E garanto-lhes que o conseguem sempre.
Há um anexim que diz: ama-se a adulação e despreza-se o adulador. É falso. A verdade é que esquece-se a adulação e protege-se o adulador.
Li há tempos uma comédia em que certo personagem, um chicanista ou rato de foro, compra todos os barulhos, na esperança de apanhar bofetadas. Desde que lhe aplicam uma, ele puxa o papel selado, lavra termo, intima o agressor e processa-o por perdas e danos. E com isso sustenta mulher e filhos.
O adulador segue processo análogo. Quando o alvo o desfeiteia, ele beija-lhe a mão e põe a juros a bofetada moral.

O Paiz, 15 de março de 1891.