Meu caro colega Múcio Leão,
Pede-me o amigo, com grande maldade numa das suas admiráveis crônicas, que eu explique as razões sutis e profundas do ódio do Sr. Almáquio Diniz, ódio tão mal empregado em minha pessoa.
É muito difícil varar o intermúndio que separa uma alma de outra. Que sabemos nós dos sentimentos alheios?
A palavra é a primeira e inevitável hipocrisia do pensamento. Não há que fiar de ditos e razões.
Quando me vejo abarbado com esses casos difíceis, lanço mão de um recurso único, o cálculo das probabilidades.
Segundo as minhas tabelas, Almáquio é meu amigo e não me treme a pena escrevendo que ele é um dos meus admiradores.
Tudo prova que ele queria e merecia a minha estima.
Houve um malentendu numa misérrima questão eleitoral e acadêmica. A Academia é um gérmen de perigosas discussões literárias.
Outrora, escrevia-me sempre. Queria ouvir-me em todos os seus projetos.
Nunca ele escreveu livro, ou folheto, que não remetesse à minha atenção e ainda até este momento não quis interromper a assiduidade das suas visitas de papel.
Confesso que às vezes tenho folheado os volumes do homem, à procura de uma página reparadora. Mas, de repente, entro a abrir a boca, de tédio e de sono.
Não é que os ache desprezíveis; a verdade é que leio muito pouco, mas reconheço que são medicinais os bons livros hipnotizantes, que podiam ser utilizados em certas injeções raquidianas.
Essa propriedade papaverácea é comum na literatura nacional.
O exibicionismo é que faz dormir aos mais vigilantes e insones. O doutor Almáquio exibe dedicatórias triviais de reciprocidade a pretexto de psicologia, divulga os bilhetes postais da gente descuidosa e agradecida das suas remessas, cita mais que um meirinho, alega autores tchecos e eslovacos, inauditos, como seja Wallaschek, Esch, Harpzenrath… que na minha ingenuidade sempre tomei por fabricantes de biscoitos, nomeados em algum livro de endereços mundiais.
De quem, senão dele, a culpa?
Já há muitos anos, estava eu metido no meu canto, longe da imprensa abominável, e apenas dirigindo o “Almanaque Garnier”, quando (creio que foi o Sr. Fábio Luz, hoje bolchevique) me recomendaram a colaboração do Sr. Almáquio Diniz.
Achei boa a lembrança, e logo descobri uma analogia simpática entre Almáquio e Almanaque.
Essa veemente sugestão verbal parecia dispensar outros auspícios propiciatórios.
O homem estava na Bahia, destilava e pingava de longe a sua perpétua literatura, e exercia proveitosa crítica sobre os livros que lhe chegavam “das quatro partes do mundo”, como ele diz.
Cercava-o o respeito universal. Lá da Amazônia, escrevia o abalizado e conhecidíssimo Sr. Curcino da Silva que Almáquio havia de ser o “crítico de maior valor do Brasil”.
Enquanto, na Bahia, enviou-me uma espécie de romance – Os Pavões.
Agradeci num bilhete postal, dizendo-lhe que o livro era excelente.
O homem foi ao dicionário de Figueiredo, assim confessa, e verificou que excelente é coisa boa e superior. E registrou, para atirar-me em rosto, esse juízo crítico.
Ora, eu não podia grosseiramente acusar a gentileza da oferta, dizendo que ela valia pouca coisa ou coisa nenhuma.
Veja, pois, o meu amigo a segurança dessa probabilidade de estima. O homem rejubilou-se com aquela excelência por via postal. Se eu achei o livro excelente, logo, era amigo e admirador.
Não me custava dizê-lo, tanto melhor quanto nunca li os Pavões (por aquele maldito costume de abrir a boca, etc). Dizendo que era excelente, de uma só cajadada evitava uma injustiça possível e a soneca provável.
O Sr. Almáquio Diniz, sem meu conselho, foi quatro vezes candidato derrotado da Academia de Letras.
Aqui está a origem do falso ódio. É coisa razoável?
Foi derrotado naturalmente pela maioria, e eu não sou a maioria. Pelo contrário; sou a menos representativa de todas as pessoas do cenáculo acadêmico.
Não quero, pois, absorver o prestígio que me dá esse capítulo de descomposturas. Faça-me o doutor Almáquio o favor de passá-las adiante a quem de direito, em segunda edição mais correta.
Essa demorada e larga hospedagem que me deu no – Ódios e Afetos – é sinal de consideração. Eis, pois, uma probabilidade nova em favor da estima que me consagra o doutor Almáquio.
Numa de suas viagens eleitorais, veio este notável escritor a conhecer-me no Garnier. Conversamos; tive boa impressão do Almáquio, ele diz que teve péssima da minha pessoa (pode ser verdade), e diz ainda que me atirou alguns motejos e flauteios que, por estúpido, não compreendi (e isso deve ser inocente mentira).
Não é provável que um galopim, que andava a pedir votos, se atrevesse a tão arriscado desporto. Provavelmente, o Almáquio fez algumas zumbaias triviais para me arrancar o voto com a lábia de todos os galopins. Com a notícia da derrota, deu-se a perros e substituiu por flauteios as lamúrias de pedinte.
É sabido que, nessa nossa mistura de raças, há um grão étnico que se distingue pela “pabulagem”. Na Bahia, donde é o termo, os pabos ou pabulos não tem conta.
O – pabo – depois de elogiar, quando lhe saem as coisas pelo avesso, diz que o elogio foi apenas uma pilhéria.
Mas, para mim, toda a literatura almaquiana é uniformemente pilhérica. Tenho também a minha pabulagem.
Pede-me o amigo, com grande maldade numa das suas admiráveis crônicas, que eu explique as razões sutis e profundas do ódio do Sr. Almáquio Diniz, ódio tão mal empregado em minha pessoa.
É muito difícil varar o intermúndio que separa uma alma de outra. Que sabemos nós dos sentimentos alheios?
A palavra é a primeira e inevitável hipocrisia do pensamento. Não há que fiar de ditos e razões.
Quando me vejo abarbado com esses casos difíceis, lanço mão de um recurso único, o cálculo das probabilidades.
Segundo as minhas tabelas, Almáquio é meu amigo e não me treme a pena escrevendo que ele é um dos meus admiradores.
Tudo prova que ele queria e merecia a minha estima.
Houve um malentendu numa misérrima questão eleitoral e acadêmica. A Academia é um gérmen de perigosas discussões literárias.
Outrora, escrevia-me sempre. Queria ouvir-me em todos os seus projetos.
Nunca ele escreveu livro, ou folheto, que não remetesse à minha atenção e ainda até este momento não quis interromper a assiduidade das suas visitas de papel.
Confesso que às vezes tenho folheado os volumes do homem, à procura de uma página reparadora. Mas, de repente, entro a abrir a boca, de tédio e de sono.
Não é que os ache desprezíveis; a verdade é que leio muito pouco, mas reconheço que são medicinais os bons livros hipnotizantes, que podiam ser utilizados em certas injeções raquidianas.
Essa propriedade papaverácea é comum na literatura nacional.
O exibicionismo é que faz dormir aos mais vigilantes e insones. O doutor Almáquio exibe dedicatórias triviais de reciprocidade a pretexto de psicologia, divulga os bilhetes postais da gente descuidosa e agradecida das suas remessas, cita mais que um meirinho, alega autores tchecos e eslovacos, inauditos, como seja Wallaschek, Esch, Harpzenrath… que na minha ingenuidade sempre tomei por fabricantes de biscoitos, nomeados em algum livro de endereços mundiais.
De quem, senão dele, a culpa?
Já há muitos anos, estava eu metido no meu canto, longe da imprensa abominável, e apenas dirigindo o “Almanaque Garnier”, quando (creio que foi o Sr. Fábio Luz, hoje bolchevique) me recomendaram a colaboração do Sr. Almáquio Diniz.
Achei boa a lembrança, e logo descobri uma analogia simpática entre Almáquio e Almanaque.
Essa veemente sugestão verbal parecia dispensar outros auspícios propiciatórios.
O homem estava na Bahia, destilava e pingava de longe a sua perpétua literatura, e exercia proveitosa crítica sobre os livros que lhe chegavam “das quatro partes do mundo”, como ele diz.
Cercava-o o respeito universal. Lá da Amazônia, escrevia o abalizado e conhecidíssimo Sr. Curcino da Silva que Almáquio havia de ser o “crítico de maior valor do Brasil”.
Enquanto, na Bahia, enviou-me uma espécie de romance – Os Pavões.
Agradeci num bilhete postal, dizendo-lhe que o livro era excelente.
O homem foi ao dicionário de Figueiredo, assim confessa, e verificou que excelente é coisa boa e superior. E registrou, para atirar-me em rosto, esse juízo crítico.
Ora, eu não podia grosseiramente acusar a gentileza da oferta, dizendo que ela valia pouca coisa ou coisa nenhuma.
Veja, pois, o meu amigo a segurança dessa probabilidade de estima. O homem rejubilou-se com aquela excelência por via postal. Se eu achei o livro excelente, logo, era amigo e admirador.
Não me custava dizê-lo, tanto melhor quanto nunca li os Pavões (por aquele maldito costume de abrir a boca, etc). Dizendo que era excelente, de uma só cajadada evitava uma injustiça possível e a soneca provável.
O Sr. Almáquio Diniz, sem meu conselho, foi quatro vezes candidato derrotado da Academia de Letras.
Aqui está a origem do falso ódio. É coisa razoável?
Foi derrotado naturalmente pela maioria, e eu não sou a maioria. Pelo contrário; sou a menos representativa de todas as pessoas do cenáculo acadêmico.
Não quero, pois, absorver o prestígio que me dá esse capítulo de descomposturas. Faça-me o doutor Almáquio o favor de passá-las adiante a quem de direito, em segunda edição mais correta.
Essa demorada e larga hospedagem que me deu no – Ódios e Afetos – é sinal de consideração. Eis, pois, uma probabilidade nova em favor da estima que me consagra o doutor Almáquio.
Numa de suas viagens eleitorais, veio este notável escritor a conhecer-me no Garnier. Conversamos; tive boa impressão do Almáquio, ele diz que teve péssima da minha pessoa (pode ser verdade), e diz ainda que me atirou alguns motejos e flauteios que, por estúpido, não compreendi (e isso deve ser inocente mentira).
Não é provável que um galopim, que andava a pedir votos, se atrevesse a tão arriscado desporto. Provavelmente, o Almáquio fez algumas zumbaias triviais para me arrancar o voto com a lábia de todos os galopins. Com a notícia da derrota, deu-se a perros e substituiu por flauteios as lamúrias de pedinte.
É sabido que, nessa nossa mistura de raças, há um grão étnico que se distingue pela “pabulagem”. Na Bahia, donde é o termo, os pabos ou pabulos não tem conta.
O – pabo – depois de elogiar, quando lhe saem as coisas pelo avesso, diz que o elogio foi apenas uma pilhéria.
Mas, para mim, toda a literatura almaquiana é uniformemente pilhérica. Tenho também a minha pabulagem.
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A razão errada e exagerada do ódio de Almáquio, já se vê, consiste em haver contado com o meu voto, inconsideradamente.
Naquela ocasião, o Almáquio concorria com Afrânio Peixoto, com quem (consultadas as minhas tabelas de probabilidades), não tinha senão relações de cortesia.
Ambos eram rivais de pretensão e de literatura; ambos fizeram as suas estréias no nefelibatismo bahiense; Afrânio escreveu a Rosa Mística e Almáquio o Sê bem dita!
Graças a Deus, nunca li semelhantes narcóticos, que me deixariam ainda agora desacordado.
Como eram ambos antigos companheiros, êmulos da mesma literatura, é natural que a rivalidade os estimulasse a uma prova decisiva. Afrânio ou Almáquio?
Pode ser que fosse flauteio desta vez. Imaginem que o homem organizou uma estatística dos méritos dele e do seu rival, fixando-os em números, da seguinte maneira:
Talento – Afrânio – 272
Almáquio – 530
Ciência – Afrânio – 615
Almáquio – 675
Caráter – Afrânio – 6
Almáquio – 788
Estilo – Afrânio – 104
Almáquio – 105
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Naquela ocasião, o Almáquio concorria com Afrânio Peixoto, com quem (consultadas as minhas tabelas de probabilidades), não tinha senão relações de cortesia.
Ambos eram rivais de pretensão e de literatura; ambos fizeram as suas estréias no nefelibatismo bahiense; Afrânio escreveu a Rosa Mística e Almáquio o Sê bem dita!
Graças a Deus, nunca li semelhantes narcóticos, que me deixariam ainda agora desacordado.
Como eram ambos antigos companheiros, êmulos da mesma literatura, é natural que a rivalidade os estimulasse a uma prova decisiva. Afrânio ou Almáquio?
Pode ser que fosse flauteio desta vez. Imaginem que o homem organizou uma estatística dos méritos dele e do seu rival, fixando-os em números, da seguinte maneira:
Talento – Afrânio – 272
Almáquio – 530
Ciência – Afrânio – 615
Almáquio – 675
Caráter – Afrânio – 6
Almáquio – 788
Estilo – Afrânio – 104
Almáquio – 105
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Sou e sempre fui supersticioso; e atento a cabala e o esoterismo desses números, fique pensativo.
Quem sabe (pensava eu), se isso não era certo na eternidade?
Cá embaixo, porém, os números estavam errados e o caso era de evidente delírio. Passaria eu por mentiroso se não tivesse mostrado esses números fatídicos a alguns amigos.
Hoje, estou convencido de que o Almáquio burlou a minha ingenuidade.
Flauteou-me, certamente, mas sem se esquecer de alegar que os méritos de Afrânio somavam 1500, ao passo que os dele subiam a 3 mil e pico.
Por incorrigível estupidez, votei no Afrânio.
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Meu caro colega,
A humanidade é extraordinária, absurda e inverossímil. Digo, como aquele sujeito, que estamos atrasados alguns séculos.
O Almáquio flauteou-me; mas também não votei nele e nem creio no seu ódio.
Se Almáquio escrever novo capítulo de arrependimento, posso assegurar-lhe que darei o meu voto a esse estimável inimigo.
A penitência há de ser feita sem traje de rigor (coisa difícil para o estupendo chique do nosso Brummel).
Apenas tenho certos receios do elogio. Se ele escreveu que Locke influiu na poesia de Alberto de Oliveira, que demônio de gênio será o inspirador das minhas prosas?
Creia-me sempre seu.
Gazeta de Notícias, 27 de fevereiro de 1923.