Março, 22 – 7 h. m. – Posso formar hoje ideia da grande catástrofe descrita naquele versículo de Gênesis: “No ano seiscentos da vida de Noé romperam-se as fontes do grande abismo e as cataratas do céu se abriram”. A chuva que alimentou o dilúvio devia ser da mesma marca desta que está funcionando desde a madrugada. – Os tipos fluviais mais usados são: a “neblina”, cotada baixo e de pouca extração, a “chuva” propriamente dita, muito procurada pelos lavradores, e o “aguaceiro”, de pouco consumo. As bátegas diluvianas estavam retiradas do mercado, mas foram de novo lançadas o ano passado em Paris, experimentadas recentemente, com muito sucesso, na Bahia e inauguradas no Rio hoje, ao que parece.
10 h. m. – Continua o temporal. De quando em quando o ambiente escurece a tal ponto que, estendendo-se a mão, não se distingue os dedos. A intervalos, clareia um pouco. Deve haver qualquer cousa séria pelos lados do oceano, que não cessa de uivar e de bramir desde manhã. A água sobe dous palmos por hora. A última sondagem, no jardim, acusa quatro pés de profundidade. Até agora estou em jejum natural. A cozinheira, que dorme fora, não pode vir reassumir o seu posto, por falta de uma lancha. Desde 9 horas hasteei um sinal de socorro, pedindo víveres, com urgência. O padeiro partiu em meu auxílio, mas naufragou a dez metros da minha porta. Vou oficiar ao ministro do Interior pedindo que condecore o seu cadáver com uma medalha humanitária.
1 h. t. – A situação agrava-se. Faltaram-me hoje os jornais, o que aumenta a minha aflição. Em torno de mim é tudo desolação e tristeza. A duodécima e última galinha acaba de perecer afogada. No galinheiro, o ganso é o único prisioneiro vivo, mas dentro de duas horas recobrará a liberdade por cima da cerca. – Acabo de descobrir um tratamento excelente para a anorexia. Consiste em o paciente levantar-se às 7 horas da manhã e permanecer até uma hora da tarde, fazendo cruzes na boca, sem provar um gole de café. – O Anatólio me chama, em gritos de socorro. Vou ver o que há.. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. .. Não houve nada. Foi apenas a mala do Anatólio que, encontrando aberta a porta do porão, levantou ferros e partiu rebocando uma mesa de pinho. Neste momento estão navegando, rumo do sul, com tanta segurança como se fossem comandadas pelo João Cândido. – Estamos insulados sem probabilidade de salvação. A água sobe de momento a momento. Mandei aplicar uma escada à chaminé da cozinha; são mais quatro ou cinco metros, isto é, mais quatro ou cinco horas de vida que poderemos disputar à inundação.
4 h. t. – A minha fome passou do primeiro ao segundo grau. O mesmo acontece ao Anatólio, que já apresenta sintomas inquietadores. Procurei acalmá-lo, mostrando-lhe que possuímos quatro pernas e quatro braços disponíveis, o que quer dizer – víveres para oito dias (e ração farta), se a situação continuar grave. Tirei à sorte qual o membro que deve ser consumido em primeiro lugar, e saiu o n. 5, isto é, o braço direito do Anatólio.Comutei a pena para o braço esquerdo, que é mais dispensável. O Anatólio acendeu o fogo por suas próprias mãos, o que me fez vir uma lágrima aos olhos, lembrando-me o sacrifício de Isaac, filho de Abraão...
7 h. t. – Estamos salvos! Um barco, à matroca, o “Albatroz”, veio dar nas águas do meu jardim, que são particulares. Declarei a incursão um caso de pirataria e procedi à captura. Arrecadei toda a munição de boca (menos o barril de aguardente), e assinei o respectivo termo no livro de bordo. O “Albatroz” leva à Gazeta esta página do meu diário, com a incumbência de pedir socorro para a população de Copacabana. O Sr. ministro da Marinha pode mandar o “S. Paulo” pela rua Gustavo Sampaio, e o “Minas Gerais” pela rua Barata Ribeiro. Não há risco de encalhe. A água dá calado bastante, mesmo para o... “Barroso”.
Gazeta de Notícias, 23 de março de 1911.