sábado, 20 de junho de 2015
sexta-feira, 12 de junho de 2015
R. Manso - "Cães soltos"
Pede-me o Abreu que escreva contra cães vadios e os automóveis, duas matérias de que não entendo. Se quisesse um artigo sobre contratos, unilaterais ou sinalagmáticos, ou sobre a “omelette au jambon”, ou outro assunto que constitua objeto de minhas cogitações ordinárias ser-me-ia fácil e agradável atender ao pedido. Todavia reproduzo a exposição de meu amigo, para que o leitor tire as conclusões. O Abreu começou:
“É muito interessante ver um indivíduo às voltas com um cão bravo. É um espetáculo muito divertido e digno de observação – salvo quando a vítima é o próprio observador. Essa restrição formulei-a hoje, de manhã. Saía eu com pressa para a cidade quando, à esquina, se postou um molosso, rosnando, rilhando os dentes e com os olhos cravados em mim. Eu não o conhecia, não sabia quem era e supus que me deixaria passar sem provocação. Adiantei-me dous passos e o animal tomou posição agressiva, rosnando mais alto. Quis corrompê-lo com blandícias, amaciei a voz, supliquei, implorei que me deixasse passar. Ele, firme, de olhar fuzilante. Dei outro passo e o cão rompeu as hostilidades acuando e latindo. Já os basbaques haviam formado um semicírculo, apreciando a cena. O cão investe contra mim. (Aplausos e palmas). Eu vibro a bengala, defendendo o espaço da minha frente. (Silêncio dos espectadores). O cão recrudesce o ataque. (Aplausos). Eu corro. (Palmas). Escorrego e caio. (Aplausos prolongados). Então fiz uma cousa que não serei capaz de repetir, ainda que viva cem anos. Apanhei um tijolo, atirei-o ao cão, a queima-roupa – e errei. (Palmas; aplausos delirantes).
Nesse momento surgiu não sei donde um sujeito de pescoço comprido (um pescoço ideal para a forca), com o bigode solidificado de pomada, e segurando o cão pela coleira me apostrofou:
– Então o senhor atira assim, sem mais nem menos, tijolos em cachorro alheio?
– Usei do meu direito. É um caso de legítima defesa, respondi levantando-me.
– Qual defesa! “Cão que ladra não morde”. Se é capaz, atire outro tijolo, ou uma pedra, ou uma bolinha de pão! Experimente!...
Não experimentei. Era eu só contra dous e tinha pressa de chegar ao escritório.Estive um instante indeciso mas, num intervalo lúcido, acenei a um automóvel que passava e parti para a cidade. Era um Fiat, de trinta cavalos, mas andaria mais se fosse de dous burros. Corre um ditado entre os choferes: “A lentidão é o meio mais rápido de esvaziar a bolsa do passageiro”. Esse rifão se aplica às viagens à hora; o dos táxi-autos é o seguinte: “A linha curva é o caminho mais curto para a fortuna”. O chofer, vendo minha perturbação, acumulou os dous adágios e me trouxe de Botafogo à Avenida fazendo um percurso de que me dá ideia este traçado:
“É muito interessante ver um indivíduo às voltas com um cão bravo. É um espetáculo muito divertido e digno de observação – salvo quando a vítima é o próprio observador. Essa restrição formulei-a hoje, de manhã. Saía eu com pressa para a cidade quando, à esquina, se postou um molosso, rosnando, rilhando os dentes e com os olhos cravados em mim. Eu não o conhecia, não sabia quem era e supus que me deixaria passar sem provocação. Adiantei-me dous passos e o animal tomou posição agressiva, rosnando mais alto. Quis corrompê-lo com blandícias, amaciei a voz, supliquei, implorei que me deixasse passar. Ele, firme, de olhar fuzilante. Dei outro passo e o cão rompeu as hostilidades acuando e latindo. Já os basbaques haviam formado um semicírculo, apreciando a cena. O cão investe contra mim. (Aplausos e palmas). Eu vibro a bengala, defendendo o espaço da minha frente. (Silêncio dos espectadores). O cão recrudesce o ataque. (Aplausos). Eu corro. (Palmas). Escorrego e caio. (Aplausos prolongados). Então fiz uma cousa que não serei capaz de repetir, ainda que viva cem anos. Apanhei um tijolo, atirei-o ao cão, a queima-roupa – e errei. (Palmas; aplausos delirantes).
Nesse momento surgiu não sei donde um sujeito de pescoço comprido (um pescoço ideal para a forca), com o bigode solidificado de pomada, e segurando o cão pela coleira me apostrofou:
– Então o senhor atira assim, sem mais nem menos, tijolos em cachorro alheio?
– Usei do meu direito. É um caso de legítima defesa, respondi levantando-me.
– Qual defesa! “Cão que ladra não morde”. Se é capaz, atire outro tijolo, ou uma pedra, ou uma bolinha de pão! Experimente!...
Não experimentei. Era eu só contra dous e tinha pressa de chegar ao escritório.Estive um instante indeciso mas, num intervalo lúcido, acenei a um automóvel que passava e parti para a cidade. Era um Fiat, de trinta cavalos, mas andaria mais se fosse de dous burros. Corre um ditado entre os choferes: “A lentidão é o meio mais rápido de esvaziar a bolsa do passageiro”. Esse rifão se aplica às viagens à hora; o dos táxi-autos é o seguinte: “A linha curva é o caminho mais curto para a fortuna”. O chofer, vendo minha perturbação, acumulou os dous adágios e me trouxe de Botafogo à Avenida fazendo um percurso de que me dá ideia este traçado:
Você reclame contra isso; ouviu? Não deixe também de frisar a diferença que há entre as relações do homem e do cão, aqui e nas outras cidades civilizadas; em S. Paulo, por exemplo.
Lá, quem possui um cão bravo prende-o; aqui, solta-o na rua.
Lá, se um cão morde, pede-se desculpa à vítima e repreende-se o animal; aqui acarinha-se o cão e descompõe-se a vítima.
Disse-me um amigo que escapei de uma pior. Se estivesse presente um membro da Sociedade Protetora dos Animais eu seria levado à Polícia para pagar uma multa e ver-me processar. Como eu objetasse que também sou animal, respondeu ele que sim, é exato, mas que não sou suficientemente irracional para gozar da proteção da Sociedade”.
Estão aí as queixas do Abreu. Não sei se ele exagera, nem se vale a pena incomodar a Prefeitura e a Polícia por tão pouco. Se não aparecer uma providência contra cães os soltos, o público pode se precaver de modo muito simples: basta que cada qual use pernas de pau.
Gazeta de Notícias, 10 de abril de 1911.
Lá, quem possui um cão bravo prende-o; aqui, solta-o na rua.
Lá, se um cão morde, pede-se desculpa à vítima e repreende-se o animal; aqui acarinha-se o cão e descompõe-se a vítima.
Disse-me um amigo que escapei de uma pior. Se estivesse presente um membro da Sociedade Protetora dos Animais eu seria levado à Polícia para pagar uma multa e ver-me processar. Como eu objetasse que também sou animal, respondeu ele que sim, é exato, mas que não sou suficientemente irracional para gozar da proteção da Sociedade”.
Estão aí as queixas do Abreu. Não sei se ele exagera, nem se vale a pena incomodar a Prefeitura e a Polícia por tão pouco. Se não aparecer uma providência contra cães os soltos, o público pode se precaver de modo muito simples: basta que cada qual use pernas de pau.
Gazeta de Notícias, 10 de abril de 1911.
quarta-feira, 10 de junho de 2015
terça-feira, 9 de junho de 2015
R. Manso - "Fitas de arte"
O proprietário de cinematógrafo que recebe de um indivíduo dez tostões para diverti-lo e lhe impinge uma tragédia, em três bátegas de lágrimas, pratica um estelionato. Quem, após o trabalho do dia, penetra num forno de exibições, presume-se que deseja distrair-se. As fitas de Max Linder, Deed, Bigodinho, Totó, Tortollini agradam ao espectador, porque fazem rir os ingênuos e as crianças, isto é, quatro quintos da assistência; mas os dramalhões são um abuso. Não há quem resista a uma tragédia concentrada, propinada no escuro. Por menos sentimental que seja, o espectador vaza, em cinco minutos, as lágrimas acumuladas em cinco anos. Ora, para se amofinar, não é necessário despender dez tostões, sentar-se numa fração de cadeira e suportar uma temperatura que arrebentaria qualquer termômetro. Há outros meios, voluntários e involuntários, muitos deles gratuitos.
Apesar de inimigo de tragédias, fui ver ontem a destruição de Tróia. Não receei comover-me porque não conheci nenhum grego nem troiano, nem ao menos sei o lugar “ubi Troja fuit”.
A fita começa pelo jardim do palácio de Menelau, refrescado por um artístico repuxo e tufos de verdura. Ao fundo, um lampião de gás, apagado, para indicar que a cena se passa de dia. Menelau recebe um chamado qualquer e parte no seu carro de duas rodas, em trajos semelhantes aos que se vêm nas frisas do Partenon. Helena recolhe-se ao gineceu.
Eis que chega Páris, com urnas de presente, e aperta os galanteios em torno da filha de Tíndaro. Esta rende-se facilmente. A fita me resolveu assim uma dúvida. Heródoto, criticando a guerra de Tróia, insinua que foi uma loucura porque, diz ele, se é injustiça raptar mulher alheia, é evidente que elas não podem ser roubadas sem seu consentimento. Aparece Vênus, uma Vênus transparente, muito razoável, embora minha opinião não tenha valor, porque foi a única deusa que já vi. Lá se vão pelos ares, numa concha arrastada por cupidos, os adúlteros Páris e Helena. Nesse momento me veio um grande dó de Menelau. As lágrimas chegaram a subir aos olhos. Mas pensei comigo: “Estou me fazendo de tolo... Helena já andou às voltas com Proteu, no Egito; depois passou a Teseu, Menelau aceitou-a se objeção. Agora é a vez de Páris; virá a de Deífobo; o marido legítimo há de retomá-la, perdoar-lhe e ser idiotamente feliz. Pois que se arranjem!...”
Enquanto eu meditava essas cousas, os chefes gregos se reúnem, prestam o juramento cinematográfico, que consiste em levantar a mão direita e sacudir a cabeça, partem em busca de Helena e armam o cerco de Tróia. Não vi Aquiles e estranhei. Supus que ele estivesse recolhido à tenda, ruminando a sua cólera. Afinal apareceu o Pátroclo e foi liquidado num instante. Quando tal vi, estremeci: “Lá vem por aí o Aquiles, pensei, dando os urros furiosos que refere a Ilíada, e liquida já o Heitor e lhe arrasta o cadáver em torno dos muros”. Mas felizmente foi apenas o susto. Aquiles não apareceu. Os beligerantes travam o célebre combate junto dos muros, o do canto XII da Ilíada. Causa arrepios de terror a fúria dos troianos defendendo as muralhas e atirando de cima delas, sobre os gregos, formidáveis caixas de papelão.
A orquestra completa o quadro, fazendo estalar a fuzilaria e troar o canhão; mas só se ouvem os tiros, as peças ficam mascaradas. Os gregos desanimam, fingem a retirada e deixam, à mão, o célebre “cavalo de Tróia”. Eu andava enganado; julgava-o um pouco maior, capaz de conter muitos soldados armados como sugerem os versos de Virgílio:... Scandit fatalis machina muros feta armis, etc.
O resto sabe-se. Os gregos entraram e incendiaram a cidade, Menelau encontra Helena abraçada a Páris, que já devia estar morto nessa época, mata-o segunda vez, arrasta a adúltera para o seu navio, e continua o idílio interrompido pelos dez anos da guerra.
Antes assim. Acabou bem e houve poucas lágrimas. Ninguém teve razão de queixa.
Gazeta de Notícias, 7 de abril de 1911.
Apesar de inimigo de tragédias, fui ver ontem a destruição de Tróia. Não receei comover-me porque não conheci nenhum grego nem troiano, nem ao menos sei o lugar “ubi Troja fuit”.
A fita começa pelo jardim do palácio de Menelau, refrescado por um artístico repuxo e tufos de verdura. Ao fundo, um lampião de gás, apagado, para indicar que a cena se passa de dia. Menelau recebe um chamado qualquer e parte no seu carro de duas rodas, em trajos semelhantes aos que se vêm nas frisas do Partenon. Helena recolhe-se ao gineceu.
Eis que chega Páris, com urnas de presente, e aperta os galanteios em torno da filha de Tíndaro. Esta rende-se facilmente. A fita me resolveu assim uma dúvida. Heródoto, criticando a guerra de Tróia, insinua que foi uma loucura porque, diz ele, se é injustiça raptar mulher alheia, é evidente que elas não podem ser roubadas sem seu consentimento. Aparece Vênus, uma Vênus transparente, muito razoável, embora minha opinião não tenha valor, porque foi a única deusa que já vi. Lá se vão pelos ares, numa concha arrastada por cupidos, os adúlteros Páris e Helena. Nesse momento me veio um grande dó de Menelau. As lágrimas chegaram a subir aos olhos. Mas pensei comigo: “Estou me fazendo de tolo... Helena já andou às voltas com Proteu, no Egito; depois passou a Teseu, Menelau aceitou-a se objeção. Agora é a vez de Páris; virá a de Deífobo; o marido legítimo há de retomá-la, perdoar-lhe e ser idiotamente feliz. Pois que se arranjem!...”
Enquanto eu meditava essas cousas, os chefes gregos se reúnem, prestam o juramento cinematográfico, que consiste em levantar a mão direita e sacudir a cabeça, partem em busca de Helena e armam o cerco de Tróia. Não vi Aquiles e estranhei. Supus que ele estivesse recolhido à tenda, ruminando a sua cólera. Afinal apareceu o Pátroclo e foi liquidado num instante. Quando tal vi, estremeci: “Lá vem por aí o Aquiles, pensei, dando os urros furiosos que refere a Ilíada, e liquida já o Heitor e lhe arrasta o cadáver em torno dos muros”. Mas felizmente foi apenas o susto. Aquiles não apareceu. Os beligerantes travam o célebre combate junto dos muros, o do canto XII da Ilíada. Causa arrepios de terror a fúria dos troianos defendendo as muralhas e atirando de cima delas, sobre os gregos, formidáveis caixas de papelão.
A orquestra completa o quadro, fazendo estalar a fuzilaria e troar o canhão; mas só se ouvem os tiros, as peças ficam mascaradas. Os gregos desanimam, fingem a retirada e deixam, à mão, o célebre “cavalo de Tróia”. Eu andava enganado; julgava-o um pouco maior, capaz de conter muitos soldados armados como sugerem os versos de Virgílio:... Scandit fatalis machina muros feta armis, etc.
O resto sabe-se. Os gregos entraram e incendiaram a cidade, Menelau encontra Helena abraçada a Páris, que já devia estar morto nessa época, mata-o segunda vez, arrasta a adúltera para o seu navio, e continua o idílio interrompido pelos dez anos da guerra.
Antes assim. Acabou bem e houve poucas lágrimas. Ninguém teve razão de queixa.
Gazeta de Notícias, 7 de abril de 1911.
Assinar:
Postagens (Atom)