quarta-feira, 1 de julho de 2015

R. Manso - "A jornada de Tetuão"

A valorosa façanha castelhana, não longe dos muros de Tetuão, está tendenciosamente descorada e diminuída no telegrama do Jornal do Commercio, de ontem. O Sr. Luiz Gomes há de estabelecer a verdade, com sobranceria, lavando a sua testada. Antes, porém, do “escreve-nos”, julgo-me pessoalmente obrigado a intervir na questão. E faço-o por um dever de família, porque tenho uma prima, cujas cunhadas se chamam Carmen Dolores e Dulce Consuelo. Vou, pois, transcrever o telegrama, corrigido e completado segundo o texto autêntico.
“Londres, 16 – Notícias de Tetuão narram a história da grande vitória ganha pelos espanhóis, em luta contra as tribos Anghera, em Marrocos. A jornada foi a seguinte. Um mouro, conduzindo uma vara de quinhentos porcos, pertencentes a um espanhol, que vive em Tetuão, assustado com a aparição repentina dos soldados espanhóis, tocou-os (os porcos, não os soldados) o mais vivamente que poude, indo os animais abrigar-se em um lugar rodeado de plantações de cortiça, onde, durante a noite, estranhando a pousada (e provavelmente a ceia; porque se o fruto da cortiça é, segundo supomos, a rolha de garrafa, pode-se gabar de ser a fruta mais insípida que existe na terra, depois da carambola) não cessaram (eles, os porcos) de dar mostras do seu descontentamento, lançando ao ar desabalados grunhidos.
Imediatamente o comandante espanhol reuniu o seu estado-maior para deliberar. Um oficial prudente observou que o inimigo se achava em tal estado de excitação, como demonstrava pelos rugidos, que seria temerário atacá-lo naquelas circunstâncias. Debatida a questão, ficou resolvido o ataque. O comandante chamou a um canto dous oficiais amigos, e disse-lhes:
– O caso é sério. Precisamos estar preparados para morrer. Eu, como chefe da expedição, devo prever tudo e não deixar nada para última hora. No caso de ser varado por uma bala, pretendo soltar esta frase: “Muero por la libertad!” Acham boa?
– Acho, comandante. Mas seria, talvez, mais adequada, mais bem sonante a palavra “Patria” somente.
– Não senhor! Um alferes pode morrer com uma palavra só, mas a morte de um general obriga a frases, uma ou duas. O senhor não conhece a História?
– Para conciliar as cousas – propôs o outro oficial – o Sr. comandante pode firmar-se no seguinte: “Muero por la libertad e por la patria!”
Escolhida essa frase, tratou-se de colocar em posição de combate os 5000 soldados da coluna. A um grunhido mais forte dos inimigos, as forças espanholas enviaram um delegado para reclamar certo fornecimento do comandante. O emissário fez o pedido em voz baixa.
– Não posso atender! respondeu o comandante.
– Mas, Sr. comandante...
– Não posso! Já disse! As que há na arrecadação não chegam para os oficiais. Se servem calças de brim...
– Servem.
Dentro em pouco rompeu a fuzilaria. Troou a artilharia. Os inimigos se dispersaram na maior desordem. A estrondosa vitória foi comunicada aos governos estrangeiros”.

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Essa epopéia excede à Ilíada e as proezas de D. Quixote. Ájax, quando destroçou o rebanho dos gregos, estava louco furioso, por não ter conseguido as armas de Aquiles. O engenhoso fidalgo da Mancha também nunca esteve em juízo perfeito. Além disso, (e eu sei que desta declaração podem me vir dissabores) não acredito na existência de Ájax, nem de D. Quixote.
A batalha de Tetuão, ao contrário, é uma verdade histórica, como prova a baixa do preço do toucinho em toda a costa africana de Dakar a Juez.


Gazeta de Notícias, 18 de maio de 1911.

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