domingo, 10 de novembro de 2019

João Foca

Eu não sou dos que acham que o melhor da festa é esperar por ela. Não vou nisso.
Cá na minha o melhor da festa é a festa quando é boa.
Esperar, vá ele! Quem espera sempre alcança, dizem, mas é conversa fiada, que tanto pode vir o esperado, como não vir. Por isso, acho eu, o certo, o matemático é quem espera, sempre cansa, sempre, mesmo quando obtém o que desejava.
Às vezes até desespera o esperante. Exemplos disso não faltam.
Quantos não têm perdido a paciência e até a vida a esperar pela sorte, pelos três meses da maré do carvoeiro, sofrendo caiporismos de toda a espécie até daquela que faz o urubu de baixo cuspir no de cima?
Um camarada tenho eu que há três anos espera uma aragem, para realizar um negócio de monta, um negocião… Esse até se sentou, já espera de corpo espalhado em uma cadeira, com medo de não ir lá das pernas se dicar de pé. Ainda assim, continua ele de pé… atrás, sempre desconfiado de que a aragem só virá quando já não seja precisa.
Agora, dos esperantes os mais apreciáveis são os namorados. Ah! esses são engraçadíssimos.
Os que esperam, fisicamente falando, como dizia o outro, então são fantásticos.
Seu Lima, seu Liminha cavou um namoro no teatro. A Belinha, filha do comendador Pedrosa, deu-lhe corda, durante o espetáculo inteiro. Não viu o que se passou em cena, mas em compensação viu Lima em penca. Ele, idem, idem na mesma data. Nos intervalos andou lá em cima na varanda e nos corredores dos camarotes grelando a pequena, que de seu lado, estava mesmo na afinação…
Que a Belinha é sapeca, é da pá virada, e nisso de namoro – Virgem Mãe de Deus! – é de borla e capelo. Não pode ver defunto sem chorar, é o que é. Pois viu o Lima e “chorou” que era mesmo uma viúva com cinco filhos na última miséria, ou melhor “chorou” como um “pinho” de sustância na mão de um seresta daqueles de papouco, que fazem uma “prima” gemer e um bordão “saluçar” só com uma dedada. Quando acabou o espetáculo a Belinha e seu rancho saíram e o Lima, que é meio “bão” aderiu ao movimento ali naqueles apertos do  [ilegível] do teatro. A pequena – é mesmo das arábias, a diaba! – quis que o “correto” ficasse sabendo a sua morada onde poderia vê-lo e então aplicou o grande sistema. Como falasse com a irmã, que ia a seu lado, disse, muito alto:
– Ah! meu Deus, quando me lembro que ainda temos de ir daqui à rua do Bispo n. tantos…
O Lima, que não é arara, logo, no punho: rua do Bispo número tantos.
(Eu digo tantos, porque com esse negócio de pôr números de invenção, em crônicas e contos já estrepei o burrinho na cerca. Ia me espetando. De uma vez o número era da casa de um homem que se escamou e queria dar-me bordoada por uma força. Não deu, porque eu não quis, que por gosto dele apanhava eu até no céu da boca.)
No dia seguinte – é dos livros – mestre Lima, todo na estica, bota-se à tarde, aí pelas 5, 5 ½ para o Bispo. Arma em guarda-noturno… da tarde e começa a ronda: pra lá, pra cá, pra lá, pra cá, sempre passando pelo número tantos.
Afinal Belinha aparece e quase dá três pinotes de contente. Ao Lima, até os cabelinhos do nariz batem palmas de satisfação.
Ela demora cousa de cinco minutos, mas, passados estes, entra. Toca o Lima a esperar. Mal sabe ele que a pequena está lá dentro nos mastigos, chamando aos peitos o grande jantar. Espera, espera na esquina. Firma-se na perna esquerda, depois na direita, trauteia números de música, reamarra os borzeguins, pondo o pé em uma goteira, olha o relógio, põe o chapéu, tira o chapéu. Como já acha escandalosa a permanência, em que toda a vizinhança já reparou, dá a si mesmo explicações mentirosas, para embrulhar os mais, como se os mais ouvissem:
– Diabo de bonde que não vem!… Este Fulano está demorando!…
Eu se passasse na ocasião, com pena de apanhar uma sova, diria a minha piada, para tais casos:
– Este bonde de Laranjeiras custa a passar nesta rua do Bispo!…
Afinal o Lima desespera de esperar e roda, mas quando já vai na outra esquina, volta-se e vê que um vulto surgiu à janela. Volta, felicíssimo, radiante, dando por bem empregada a espera e vê à janela… a Libânia, a ama-seca do irmãozinho de Belinha, que veio espiar a passagem do condutor de bonde, que é seu namorado…
Imaginem o despontamento e a raiva com que ele fica a duas vizinhas que riem escarninhamente porque perceberam o logro que o pobre diabo apanhou.
Este aí, esperou, cansou-se e desesperou… Alcançar, só alcançou a troça das sirigaitas e uma dor nas cadeiras… Porque, é singular, mas é verdade, quando a gente está muito tempo em pé o que dói é… as cadeiras que, parece, só deviam doer estando a gente sentado… nelas…
Não, lá isso de esperar, temos conversado!…


Jornal do Brasil, 10 de janeiro de 1905.

quinta-feira, 1 de agosto de 2019

João Foca

Fui ontem dar os pêsames ao meu prezado amigo Gomensoro, a quem um tio fez a desfeita de morrer, deixando-lhe uma bagalhoça de encher o olho: nada menos de 150:000$ e dois prédios.
O Gomensoro é um rapaz de muito espírito, estourado a meu gosto e que há de meter o pau nessa cobreira com uma graça infinita, até ficar apitando que nem maduro.
Fui encontrá-lo aferrolhado em casa, trancado a sete chaves, visível apenas para os muito íntimos:
– Que é isso, filho, o dinheiro pôs-te inatingível?… Tudo isso é medo dos mordedores? Não sais, não desentocas desde que és homem rico… Estarás avarento?...
– Não é isso, embora houvesse razão para o fazer que, no Rio hoje em dia, meu camarada, a dificuldade não é cavar a vida, mas defender o arame que se tenha no bolso do avança que fatalmente lhe hão de dar...
– Tens razão...
– Não saio, porém, por outro motivo… Tenho medo de encontros...
– De encontros?
– Sim, de conhecidos que me venham fazer perguntas… Calcula tu: eu estou de luto e com um braço na tipoia, por causa de uma queda que dei no banheiro… Vê lá: de luto e de tipoia!… Matavam-me com perguntas sobre o motivo do luto e ensinamentos de remédios para as prováveis moléstias do braço...
Realmente assim é; o nosso povinho é capaz de andar léguas para bisbilhotar sobre os motivos de estar um camarada todo de negro ou para lhe ensinar mezinhas.
É dos livros, é dos regulamentos: quem avista um simples conhecido de fumo no chapéu, atravessa a rua e vai logo:
– Está de luto?
– Estou...
– Por quem?
– Um parente...
– Não sabia… Meus sentimentos… Parente próximo?… Morreu aqui?… De que morreu? Que idade tinha?… Deixou família?… Estava bem, não estava?...
Se o parente é muito próximo surgem as consolações:
– É o caminho de todos nós...
Se é criança:
– Antes assim, do que andar rolando, sofrendo neste mundo...
Se é velho:
– Ora, já tinha gozado muito, não é?… Se havia de ficar caduco, dando trabalhos...
Se é moça solteira:
– Pare ter talvez de cair nas mãos de um marido que a maltratasse, como a filha do dr. Azevedo, antes no céu...
Mas como isso se repete dez, vinte, cem vezes, sempre que se encontra um conhecido, segue-se que é do enlutado dar bofetadas nos perguntadores, ou um tiro em si mesmo.
Com as doenças é outra scie. Toda a gente entende que há de ensinar remédios:
– Reumatismos?… Opodeldeck é santo remédio… Agora eu tenho uma tia que se dá bem com fricções de um remédio para cavalos de corridas: Embrocação… Nos vidros o nome está em inglês embrocation…
Também sei de uma pessoa para quem banha de anta é tiro e queda… Nunca experimentou dar no lugar um suadouro de vapor de água fervendo?… Pois é bom, alivia. Pega-se em uma chaleira, bota-se água e deixa-se abrir bem a fervura, quando está na conta tira-se a tampa e deixa-se a perna ou pedaço do corpo que é apanhar aquele vapor, não sabe?… Depois embrulha-se bem em umas flanelas, abafa-se com o cobertor… Não vê que o calor faz sair os humores...
E se a gente não dispara, o almanaque de medicina fala horas e horas. As senhoras de idade, então, são formadas em receituários. Duas delas, começando a conversar em doenças ensinando remédios, contando curas maravilhosas, lembrando o que se deu com a filha do compadre Fulano que estava desenganado por três médicos e com a irmã de uma cunhada de meu concunhado, marido de minha irmã mais velha, que teve com os drs. Beltrano e Sicrano, passou-se para a homeopatia, andou até com um mão santa e nada para afinal ficar boa num pronto com uma coisa à toa, cozimento de raiz de não sei o que, tirada no minguante e tomado em jejum – duas delas ferrando um cavaco neste sentido, dão tempo de um cristão de passo curto ir a pé à Copacabana e voltar, que ainda as há de achar no bate-boca.
Está na massa do sangue, é mania do país, doença da terra… Eu mesmo, que reparo nestas coisas, quantas vezes me tenho apanhado a ensinar que, para solitária, não há como água de coco em jejum e pevide de abóbora, de infusão, e para febre intermitente chá de casca de lima umbigo, quanto mais verde melhor, por causa do sumo?...
Achei, pois, que o Gomensoro teve grande juízo em se trancafiar em casa.
Nos casos dele, eu, a ter de sair, havia de ser acompanhado de um fonografozinho, com tubos preparados, contando a morte do tio e a queda no banheiro…
Sebo, que cansa ter de repetir essa coisa e, principalmente, que se está sentidíssimo, aflitíssimo com a morte de um tio que deixa 150:000$ e dois prédios…

Jornal do Brasil, 17 de janeiro de 1905.