Fui
ontem dar os pêsames ao meu prezado amigo Gomensoro, a quem um tio
fez a desfeita de morrer, deixando-lhe uma bagalhoça de encher o
olho: nada menos de 150:000$ e dois prédios.
O
Gomensoro é um rapaz de muito espírito, estourado a meu gosto e que
há de meter o pau nessa cobreira com uma graça infinita, até ficar
apitando que nem maduro.
Fui
encontrá-lo aferrolhado em casa, trancado a sete chaves, visível
apenas para os muito íntimos:
– Que
é isso, filho, o dinheiro pôs-te inatingível?… Tudo isso é medo
dos mordedores? Não sais, não desentocas desde que és homem rico…
Estarás avarento?...
– Não
é isso, embora houvesse razão para o fazer que, no Rio hoje em dia,
meu camarada, a dificuldade não é cavar a vida, mas defender o
arame que se tenha no bolso do avança que fatalmente lhe hão de
dar...
–
Tens razão...
– Não
saio, porém, por outro motivo… Tenho medo de encontros...
– De
encontros?
–
Sim, de conhecidos que me venham fazer perguntas… Calcula tu: eu
estou de luto e com um braço na tipoia, por causa de uma queda que
dei no banheiro… Vê lá: de luto e de tipoia!… Matavam-me com
perguntas sobre o motivo do luto e ensinamentos de remédios para as
prováveis moléstias do braço...
Realmente
assim é; o nosso povinho é capaz de andar léguas para bisbilhotar
sobre os motivos de estar um camarada todo de negro ou para lhe
ensinar mezinhas.
É dos
livros, é dos regulamentos: quem avista um simples conhecido de fumo
no chapéu, atravessa a rua e vai logo:
–
Está de luto?
–
Estou...
– Por
quem?
– Um
parente...
– Não
sabia… Meus sentimentos… Parente próximo?… Morreu aqui?… De
que morreu? Que idade tinha?… Deixou família?… Estava bem, não
estava?...
Se o
parente é muito próximo surgem as consolações:
– É
o caminho de todos nós...
Se é
criança:
–
Antes assim, do que andar rolando, sofrendo neste mundo...
Se é
velho:
–
Ora, já tinha gozado muito, não é?… Se havia de ficar caduco,
dando trabalhos...
Se é
moça solteira:
–
Pare ter talvez de cair nas mãos de um marido que a maltratasse,
como a filha do dr. Azevedo, antes no céu...
Mas
como isso se repete dez, vinte, cem vezes, sempre que se encontra um
conhecido, segue-se que é do enlutado dar bofetadas nos
perguntadores, ou um tiro em si mesmo.
Com as
doenças é outra scie. Toda a gente entende que há de
ensinar remédios:
–
Reumatismos?… Opodeldeck é santo remédio… Agora eu tenho uma
tia que se dá bem com fricções de um remédio para cavalos de
corridas: Embrocação… Nos vidros o nome está em inglês
embrocation…
Também
sei de uma pessoa para quem banha de anta é tiro e queda… Nunca
experimentou dar no lugar um suadouro de vapor de água fervendo?…
Pois é bom, alivia. Pega-se em uma chaleira, bota-se água e
deixa-se abrir bem a fervura, quando está na conta tira-se a tampa e
deixa-se a perna ou pedaço do corpo que é apanhar aquele vapor, não
sabe?… Depois embrulha-se bem em umas flanelas, abafa-se com o
cobertor… Não vê que o calor faz sair os humores...
E se a
gente não dispara, o almanaque de medicina fala horas e horas. As
senhoras de idade, então, são formadas em receituários. Duas
delas, começando a conversar em doenças ensinando remédios,
contando curas maravilhosas, lembrando o que se deu com a filha do
compadre Fulano que estava desenganado por três médicos e com a
irmã de uma cunhada de meu concunhado, marido de minha irmã mais
velha, que teve com os drs. Beltrano e Sicrano, passou-se para a
homeopatia, andou até com um mão santa e nada para afinal ficar boa
num pronto com uma coisa à toa, cozimento de raiz de não sei o que,
tirada no minguante e tomado em jejum – duas delas ferrando um
cavaco neste sentido, dão tempo de um cristão de passo curto ir a
pé à Copacabana e voltar, que ainda as há de achar no bate-boca.
Está
na massa do sangue, é mania do país, doença da terra… Eu mesmo,
que reparo nestas coisas, quantas vezes me tenho apanhado a ensinar
que, para solitária, não há como água de coco em jejum e pevide
de abóbora, de infusão, e para febre intermitente chá de casca de
lima umbigo, quanto mais verde melhor, por causa do sumo?...
Achei,
pois, que o Gomensoro teve grande juízo em se trancafiar em casa.
Nos
casos dele, eu, a ter de sair, havia de ser acompanhado de um
fonografozinho, com tubos preparados, contando a morte do tio e a
queda no banheiro…
Sebo,
que cansa ter de repetir essa coisa e, principalmente, que se está
sentidíssimo, aflitíssimo com a morte de um tio que deixa 150:000$
e dois prédios…
Jornal
do Brasil, 17 de janeiro de 1905.
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