terça-feira, 18 de outubro de 2022

Antônio Torres

 Dois dedos de prosa com os operários de Niterói


Operários amigos! Fiquei triste, sendo vosso amigo, quando li certa passagem de dois discursos pronunciados  na Câmara pelo sr. deputado Norival de Freitas. Disse esse ilustre representante – e ninguém o contestou – que o superintendente da Leopoldina, quando soube da parede que fizeram muitos dos vossos camaradas, declarou  que ele na África costumava debelar tais reclamações a chicote.
Quando li isto, fiquei boquiaberto, a pensar, a pensar... Parecia-me ouvir já o silvo do látego britânico desse nosso aliado sobre o lombo dos operários brasileiro, que reclamavam um pouco mais de pão, em troca do muito que eles trabalham para que os diretores da Leopoldina se enriqueçam e sirvam pessimamente à sua freguesia. Mas depois, vi que o melhor era sorrir. Sim, senhores! Com que, então, a chicote, heim? Mas, meus amigos, esse inglês está deslocado na superintendência da Leopoldina. Esse cidadão é, sobretudo, um humorista, um grande, um luminoso, um irresistível humorista. Não é um humorista ingênuo como Mark Twain, nem um humorista amplamente humanitário como Charles Dickens e Bernard Shaw; é um ironista doloroso, escorchante, macabro, como Swift. Maior do que Swift! Este apenas escreveu o que o inglês da Leopoldina quer realizar, ou melhor, já tem realizado... na África!
A chicote! Vêm os operários pedir um pequeno aumento de ordenado a um patrão que na paz já era riquíssimo e mais rico ainda ficou durante a guerra; o patrão recusa-se a recebê-los; sorve um trago de whisky; dá uma baforada de cachimbo e grunhe na sua meia-língua: “Oh! Oh! Mim combate isso com chicote! All right!” É Guliver em Liliput. Como Swift conhecia bem seus patrícios! Mas o homenzinho da Leopoldina não teve necessidade de sair ele próprio, de látego em punho, chicoteando operários Praia Grande em fora; encontrou coisa melhor: o governo do Estado do Rio, que, composto de humorista da escola do sr. Land e do sr. Taylor, mandou a polícia matar operários e soldados do exército, desse mesmo exército que, pequenino embora, talvez sirva algum dia para ajudar a defender o que na Câmara dos Comuns se chama pomposamente “a causa da Liberdade, da Justiça, da Verdade, da Civilização, da Humanidade” e não sei de que mais. Mas, amigos operários, vós sois positivamente uns portentos. Tendes fome e vem o dr. Álvaro de Carvalho e declara na Câmara que não é este o momento de reclamar pão, porque, tendo Wilson desenterrado e mostrado à humanidade as cinzas de Washington, etc., etc., o resto já é sabido. Agora, reclamais algumas dezenas de mil réis para de todo não morrerdes a fome, e o hierático inglês da Leopoldina receita-vos... chicote! Como vedes, o cardápio é dos mais apetitosos: para começar, sopa de lágrimas; entrada – cinzas de Washington em molho de suor; peixe-espada à Geraque Collet; sobremesa – torta de chicote à inglesa; café de milho torrado, aguardente, cadeia, etc.


Entretanto, senhores, vós também podíeis, se o quisésseis, ser humoristas a vosso modo. Antes de tudo, nada de dinamites! Dinamites, turpinites, tiros, arruaças, mortes, tudo isso deve ser evitado, a fim de não dar razão aos plutocratas, que pagam a polícia e os governos para que assassinem os operários em nome da ordem. E principalmente hoje em dia! Olé, pois não se pode já um operário falar em aumento de ordenado sem que logo surjam jornais muito aliados, nada brasileiros e sobretudo muito honestos – benza-os Deus! – a dizer que esses operários são manobrados por alemães! Não pode um publicista protestar contra a insolência de qualquer Taylor e defender os seus patrícios, sem que logo acudam de todos os lados inúmeros cães de guarda, alimentados por argentários poderosos, a ladrar que esse escritor é um derrotista (que chic!) pago por alemães! Já não há liberdade para nada. O país está entregue aos estrangeiros, dado de mão beijada, aos pedaços, por políticos sem escrúpulos, sem caráter, sem patriotismo, que não permitem a menos análise de certos atos, [ilegível].


Nada de dinamite! A dinamite é uma arma, de defesa ou de vingança, tão legitima como qualquer outra; mas não é arma de precisão; é impossível adaptar mira a uma bomba; de sorte que, uma vez lançada, ela mata não só culpados como inocentes; e às mais das vezes mata centenas de inocentes, enquanto o verdadeiro culpado escapa são e salvo; é, pois, um processo brutal, estúpido, de reação. Nós temos aqui nas nossas florestas muitas qualidades de plantas, autênticas estricnoses, que, sabiamente preparadas e astutamente propinadas, numa chávena de chá de Lipton ou num copo de whisky White Label, produzem no mais resistente e tradicional organismo britânico sensações tais, que o paciente morre em vibrações tetânicas, transformado em arco, de dentes cerrados, espumando e amaldiçoando o dia em que nasceu e os pais que o geraram. Não há sábio, não há ciência capaz de salvar o desgraçado de tão temível peçonha. Se delas de lembrassem os operários ameaçados de chicote? Era assim que procediam, e muito justamente, para com os maus senhores, os nossos negros d'África. Ah! senhor Taylor, imenso humorista! Cuidado, muito cuidado com essas alusões aos negros d'África e ao chicote que lhes lanhe o lombo! Não se esqueça de que os africanos puros já por aqui morreram mas deixaram descendentes; e estes, louvado seja Deus, têm estudado o seu bocadinho nos livros dos brancos; e em certos casos o humorismo africano pode suplantar o humorismo inglês, cuja principal característica  é a ingenuidade...
Mas há ainda muitos outros meios de resistência pacífica contra o estrangeiro que se fizer opressor; e um desses meios é a cobra. Que variedade temos nós desses animaizinhos que são tão terríveis mas que se podem tornar, em dado momento, auxiliares preciosíssimos da nossa autonomia!
Temos a coral, por exemplo, de cores variadas, linda, pérfida, a meretriz irresistível das moitas; o seu veneno é rápido como o olhar de uma mulher formosa; e a sua fuga é segura como a fuga de uma ladra. Ora, pois! Está o inglês da Leopoldina jantando alegremente na sua casa com amigos e amigas; estoura a champanha e ferve a pândega, quando, de repente, um criado, um operário, um não se sabe quem, solta uma coral sobre a mesa do banquete! E ela a deslizar por entre os copos, com os olhitos cintilantes e a fitinha da língua a servir de leme para o golpe certeiro que ela dará... E o inglês a fugir com as damas! All right!
Temos a jararaca e a jararacuçu, duas beneméritas do nacionalismo. Negras, levemente rajadas, frias como o coração de um lorde, terríveis como um judeu da City, traiçoeiras como detetives, que não fariam elas, se colocadas discretamente no quarto de dormir de um superintendente da Leopoldina!
Temos a surucucu e a surucucutinga, que se enroscam como mola de relógio e saltam sobre o adversário em certeiro bote que rivaliza com a precisão matemática das metralhadoras.
Temos a cascavel, majestosa, inimiga de comprar brigas, muito confiada no seu chocalho, mas abstendo-se de atacar se não for atacada. É partidária da neutralidade. Estando de barriga cheia, a Pátria lhe é indiferente. Não nos convém.
Temos finalmente, para não citar mais, a formidável urutu. A urutu é pequena, alargada, de cabeça chata, preta, velocíssima, e a sua peçonha é mais mortal do que a da víbora, salvo melhor informação do eminente dr. Vital Brasil. Lá no sertão onde eu nasci, quando a urutu consegue picar o roceiro no dedo do pé ou da mão, ele arranca logo do facão e decepa o dedo, porque, se não o fizer, a morte é certa e imediata. Ora, imaginai, amigos, o efeito que produziria uma urutu no quarto de dormir do presidente  Geraque Collet, que, para defender os interesses capitalistas da Leopoldina, manda a sua polícia assassinar os operários. Soltas uma urutu, uma jararaca e uma surucucu no quarto do homem que dorme nos braços da Leopoldina, eu só quisera saber se ele as espantaria a chicote... E como seria cômico ver o sr. Taylor, de pijama, às duas da madrugada, saltando da cama e muito brasileiramente abrindo a janela e chamando o guarda-noturno para matar as cobras! E não é só isso! Nós temos ainda os caranguejos de terra, as aranhas cabeludas e os escorpiões, que são medonhos!
De maneira que, em caso de revolução declarada contra os escravocratas da Leopoldina, eu não aconselho aos operários que fossem tomar por força os arsenais, como fizeram no princípio da Revolução Francesa e de muitas outras revoluções; o aconselhável é irem os meus amigos ao Instituto Butantã e tomarem as centenas de cobras que existem no seu Serpentário; com esses animaizinhos, ó meus patrícios, podíeis fazer as mais pacíficas, brilhantes, proveitosas e revolucionárias pilhérias deste mundo. O estrangeiro pode resistir a canhão; mas há duas coisas que o horrorizam acima de tudo: faca de arrasto e cobra. Tenho visto muito valente de além-mar correr desses dois monstros...

Correio da Manhã, 10 de agosto de 1918.

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