segunda-feira, 31 de agosto de 2015

R. Manso

Autonomia ou tirania?

Deus fez a fita de paisagem que se estende entre o Leme e Ipanema, debruou-a com uma franja de areia branca, sombreou o fundo com uma rampa de florestas, plantou, aqui e ali, cocurutos calvos, entre os morros cobertos de matas, soprou as ondas contra a praia e não querendo deixar ao abandono tal obra-prima, chamou Satanás e disse-lhe:
– Você quer tomar conta desta paisagem e conservá-la?
– Pois não, Altíssimo.
– E que salário exige?
– Ora, Altíssimo, essa pergunta até me ofende... Não aceito por interesse. Quero apenas lhe prestar um serviço. Zelarei por isto de graça, com tanto que o Altíssimo me dê inteira autonomia.
– Está feito.
Não tenho a estulta pretensão criticar os desígnios celestes, mas, tanto quanto as aparências permitem julgar, o negócio foi mau. O diabo entende “autonomia” no sentido antigo, na acepção grega da palavra e a exerce como um soberano caprichoso ou demente. Sua alma, sua palma. Eu sou um súdito seu efêmero. Vendi-lhe a minha tranqüilidade por dous anos em um documento firmado por minha mão, e chamado “contrato de locação”. Cumprida a pena, Deus pode me ajudar que eu vá descansar no Acre, ou em Cuiabá ou em qualquer outro lugar que saiba respeitar o barômetro, o termômetro e anemômetro.
Quando o diabo concedeu à Jardim Botânico o privilégio de bondes no seu bairro, impôs condições muito curiosas, por exemplo: não haver horário. De quando em quando, vêem-se três, cinco, oito bondes, encarneirados um atrás do outro. Depois somem-se. Você olha; nada! Espera; nada! Desespera; pior! Se quiser, então, um lugar seguro para descansar, pode estirar-se na linha e dormir com o pescoço em um dos trilhos e o tornozelo no outro, tranqüilamente.
Os postes de parada são tão distantes entre si, que os engenheiros ainda não conseguiram medir o intervalo. Há opiniões de que, entre um poste e o seguinte não medeia mais de um quilômetro. Outros dizem que esse cálculo é exagerado e evidentemente falso; que a distância não passa de novecentos e oitenta e poucos metros.
No verão o problema da espera do bonde fica muito simplificado: o aspirante a passageiro sai de casa, despede-se da mulher, fecha a cancela do jardim, abre o guarda-sol, marcha para o poste, espera uma hora, espera outra hora, cai de insolação, acode a Assistência, recolhe-o no automóvel, dá o atestado de óbito, contrata-se o enterro, prega-se a notícia à porta dos jornais, chora a família, vêm os amigos, etc., etc., etc. Mas na estação das águas o caso se complica, porque a chuva, no bairro, não cai de cima para baixo, como parece que devia ser, vem de baixo para cima como as fontes artesianas; é horizontal, paralela com o chão. De modo que, quando o morador é feliz de não demorar o bonde mais de quarenta ou cinqüenta minutos, entra no veículo, escorre e do resfriamento trata depois. Quando porém o carro está no horário regular, com intervalos de 120 minutos, o pretendente pode dissolver-se ou, na melhor hipótese, afogar.
O diabo rege o seu bairro como lhe apraz. Quando lhe acenam com a ameaça de intervenção, ele responde:
– Meu governo, do Leme a Ipanema, é autônomo. Autônomo vem do grego “auto”, próprio, e “nomos”, lei, regra. Não admito intrusões. O poder que tenho recebi-o de Deus. “Omnis potestas a Deo”.
E desapareceu com um estouro, deixando um cheiro a enxofre.
Tal governo não é autonomia, é tirania. Mas que se há de fazer?


Gazeta de Notícias, 13 de junho de 1911.

domingo, 23 de agosto de 2015

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

R. Manso

Um informante em apuros

Telegrama de ontem, de São Paulo: “Chegou aqui, domingo, o conselheiro Teixeira de Abreu, lente de direito civil ma Universidade de Coimbra, autor de obras jurídicas notáveis e que vem fazer o estudo do direito brasileiro”.
Se o conselheiro Teixeira atravessou o Atlântico para estudar, deste lado, o ramo jurídico de sua especialidade (como é de presumir-se), S. Ex. caiu no maior conto do vigário em que é possível a um homem cair durante a sua vida, ou em duas ou três vidas, mesmo que cada uma delas seja de trezentos anos.
A decepção que vai ter, ou que já teve, é dessas que levam um homem à cama (ou à rede, se ele for nortista), e exigem meses para convalescença.
O cavalheiro que for encarregado de servir de cicerone ao lente de Coimbra, poderá diminuir-lhe o abalo da decepção, se seguir o plano que indico. Basta observar-lhe as linhas gerais; os detalhes podem variar de acordo com as necessidades estratégicas.
 Enquanto estiver sendo trafegado pela Avenida Paulista, Parque da Antártica, Cantareira e outros arredores da cidade, o conselheiro não terá ocasião de indagar pelo nosso direito. O perigo é quando se acabarem os passeios. O conselheiro dirá mais ou menos o seguinte:
– Bem. Está tudo muito bonito. Dou sinceramente parabéns ao Brasil de possuir uma cidade como S. Paulo. No meu país não há cousa melhor...
– É modéstia de V. Ex.! deve interromper o cicerone.
– Não. Não é modéstia. Mas não vim ao Brasil como turista. Vim examinar, estudar o direito brasileiro...
– Com muito prazer! Acudirá o cicerone; e, fazendo-se de tolo: Direito penal, não?
– Não senhor...
–Ah, sei... Quer ver o nosso Direito Constitucional. Compreendo agora. A constituição brasileira não se acha em bom estado. Também já está servindo há vinte anos; é natural...
– Não é isso também que me interessa.
– Então é o Direito Comercial... Eu devia ter percebido a mais tempo que V. Ex. desejava ver o nosso Direito Comercial. Temos um código excelente. E grosso. E boas leis extravagantes sobre falência, notas promissórias e operações de câmbio. Vou mandar buscar um volume...
Esse jogo não pode continuar indefinidamente. Há de chegar a hora em que o conselheiro Teixeira de Abreu, se o cicerone não tiver escapulido antes, lhe dirá:
– O senhor está fugindo com o braço à seringa. Entendo muito bem. Toda a gente sabe que sou lente de Direito Civil em Portugal e o que quero ver é o Direito Civil brasileiro. Que é do seu código?
– Código? Ah, sim, o senhor alude ao Código Civil, não é? A Constituição imperial já se referia a ele. O conselheiro Nabuco andou com ele às voltas. Teixeira de Freitas organizou um trabalho importante. Houve depois o do Joaquim Felício, do Coelho Rodrigues, do Clóvis Beviláqua...
– Nada disso me importa. Quero saber da sua legislação civil – atual – Que é dela?
Esgotados os recursos, o cicerone poderá confessar, preparando o terreno, mastigando as palavras:
– Legislação civil? É verdade... o senhor não se assuste... a culpa não é nossa... estas cousas acontecem... nós... nós... nós... não a temos...
– Não a tem?... exclamará o conselheiro dando um salto na cadeira.
– Não, senhor. A que estamos usando está fora de moda, com as mangas curtas, apertada nas cavas. Foi-nos dada por D. Filipe, per graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar, em África senhor de Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia e Brasil, no ano de Cristo de 1603.
– A ordenação Filipina!
– Exatamente, conselheiro.
Esta resposta dará o cicerone se for homem de sangue frio, pouco acessível à influência do sangue no rosto. No caso contrário, deverá fugir sem resposta. Porque é duro confessar a um português que o grosso do nosso direito civil consta de uma compilação lusitana, que foi julgada inadequada em 1642, condenada por Pombal em 1775, e atirada ao lixo, pelo seu país, há muitas décadas.


Gazeta de Notícias, 1 de junho de 1911.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

João Sem Telha

A inteligência do Zequinha

Os pais, por um sentimento de orgulho amoroso muito desculpável, mal lhes nasce um filho, acostumam-se logo a gabar no petiz, certas qualidades e aptidões que as pessoas estranhas e o próprio inocentinho, ignorariam para todo o sempre, se não fossem prevenidos.
A perversão dos sentidos paternos é inevitável quando estes tratam de decifrar a seu modo, os monossílabos inconscientes e as atitudes despretensiosas do “rebento encantador” que, com o cérebro ainda dominado pelas exigências do estômago, só se interessa pela hora do “de mamar”. Para o ouvido maravilhado dos pais, o irrefletido “pá-pá-pá” balbuciado pela criancinha, tanto pode significar: “papai”, como “mamãe, tetéia, angu” ou biscoito. Tudo, para isso, depende de ocasião.
La Fontaine, na sua fábula da Águia e da Coruja mostrou a quanto pode chegar o grau de perturbação mental de uma mãe, quando fez o pássaro de Minerva, chamar de “mignons, beaux, bien faits et jolis” aos seus filhotes horrendos e repugnantes. E este mundo anda cheio de mães-corujas que, no entanto não deixam de querer ser “águias” quando debicam nas outras mães os mesmo defeitos e exagero que elas também possuem.
Mas o que os pais fazem mais empenho em exalçar para os estranhos, é a inteligência dos filhos. Quem já não ouviu um de três anos cantarolar “par secousses”, ajudado pelo papai ou pela mamãe, os versinhos da cantiga da época? Quem já não teve notícias pela boca de um pai extremoso das respostas inteligentes e ousadas que seu filho, de 4 anos lhe dá, a todos os instantes?
Ainda ontem, à tarde, viajava eu em um bonde do Ipanema em companhia do dr. Samuel Mosqueira, com destino a sua residência da rua N. S. de Copacabana onde pretendia jantar, quando na altura do Largo do Machado o dr. Samuel, como visse um garoto vendedor de jornais de uns 6 anos presumíveis insultando o condutor do bonde com palavras e gestos obscenos, começou a contar-me a precocidade do seu Zequinha, “enfant terrible” e inteligentíssimo de 5 anos incompletos.
– O meu Zequinha, disse-me o dr. Samuel, não é por seu meu filho, mas sempre foi muito adiantado. O que aquele “diabinho” faz é de causar pasmo a qualquer. Sem ninguém lhe ter ensinado, já sabe cantar todo o “Pois não” do Eduardo Pinto e toca com dois dedinhos o “Vem cá Bitu” do maestro Oswaldo Guerra!...
Na altura do Túnel Novo, o Zequinha já ligava palavras dissilábicas e raciocinava como gente grande, metendo o bedelho na conversa dos maiores.
Ao saltarmos no ninho da “águia”, ele de tão sabido já não ligava importância aos meninos da sua idade, sempre às voltas com seus livros de figuras.
Eu estava ansioso por conhecer, aos cinco anos, o provável substituto de Rui Barbosa na nossa mentalidade futura, e a maldita curiosidade levou-me a exigir a aparição do prodígio, mal transpus os umbrais do salão de visitas do dr. Samuel.
Este não se fez de rogado. Apertando um botão elétrico, chamou um criado e disse-lhe, com a voz cheia de orgulho: – Vá buscar o meu Zequinha...
Vastos minutos se passaram. A conversa já fugira para outro assunto, quando Madame Mosqueira, visivelmente contrariada, penetrou no salão, a reclamar:
– Samuel, vá ver o Zequinha... Está num berreiro dos diabos, há mais de quatro horas, lá no fundo do quintal!...
– Mas o que tem ele?!
– Nada; apenas abriu um buraco no terreno e, agora, quer por força carregá-lo cá pra dentro.
E eu, enquanto o casal ia à cata do teimoso, escapuli-me pelo portão, para que eles, a sós, saboreassem melhor a nova demonstração do intelecto do “prodígio”.


O Jornal, 6 de janeiro de 1920.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

J. Brito

 José Ângelo Vieira de Brito ficou mais conhecido com o pseudônimo de J. Brito.

Escreveu crônicas humorísticas com o pseudônimo de Antônio em A Notícia e na Gazeta de Notícias.
 
PARTIDA


Américo, muito amigo de pregar “partidas”, sabendo que o Vieira estava sem vintém, chegou-se-lhe misteriosamente ao pé do ouvido e disse baixo como numa revelação:
– Sabes? o Manduca está cheio de dinheiro!
Antes disso já ele havia sondado o “espírito financeiro” do Manduca, e sabia que ele estava... como o Vieira: “limpo”. Pregara-lhe a mesma partida “partida”, soprando-lhe ao ouvido:
– Sabes?... o Vieira está com uma bruta bolada!
Feito isso, preparado o terreno da intriga, o pilhérico Américo fechou-se em copas. À pequena distância, começou a observar a atitude dos dous: eram dous “prontos” entre si, cada um deles julgando que o outro estava “cheio”. Primeiro o Manduca teve para Vieira um sorriso inexpressivo, sorriso de pronto para homem que tem dinheiro; a esse sorriso o Vieira correspondeu com outro, mais afetuoso; e começou entre os dous uma espécie de namoro correspondido, com olhares significativos, sorrisinhos, concordâncias, etc., etc. Por fim, os dous falaram-se, pois se davam. O Vieira começou:
– Ah! seu Manduca, deve ser uma cousa horrível quando um camarada não tem dinheiro...
– Oh! sim, deve ser... Calculo... Deve ser horrível. Eu felizmente...
– Também eu. Só sei disso por ouvir dizer.
– Graças a Deus, sempre consigo...
– Eu também. Mas deve ser horrível.
O Vieira teve assim a confirmação de que o Manduca tinha “algum”. Convidou-o para tomar “alguma cousa”. Beberam, olharam-se, sorriram-se... Cada um deles com uma doida vontade de dar o bote no outro. Na hora de pagar, o Manduca “coçou-se”; igualmente “coçou-se” o Vieira; das duas coçadelas não saiu nada. Ambos olharam o espaço azul; passou-se um longo minuto. O Vieira coçou-se de novo. Ambos estavam com muita coragem, porque cada um sabia que o outro “garantia”. Por fim o Manduca falou:
– Tens miúdos aí?
– Não.
– É porque eu não tenho trocado...
– Também eu trocado não tenho...
– Então vamos trocar.
– Vamos.
– Troca lá, porque eu não tenho para trocar.
– Também eu, para trocar não tenho...
– Mas você não está cheio de dinheiro?
– Deixa de pilhéria. Você é que está.

________

A discussão não acabou porque o Américo rebentou na gargalhada e pagou a despesa.


Gazeta de Notícias, 21 de janeiro de 1917.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Alfredo Riancho

Minas Gerais, 1 de agosto de 1894.

R. Manso

A escola de Medicina em Belo Horizonte


Escreve-nos o Sr. Luís Gomes:
“Belo Horizonte, 2 de março
Sr. R. Manso – Saúde. Antes de entrar em assunto devo explicar-lhe que não sou o diretor da Estrada de Ferro Recife-Cádiz, nem o ministro português, nem o médico da Leopoldina que está soldando as pernas dos descarrilados da estação Muniz Freire, nem o juiz de direito do Rio Pardo, nem o fiscal de imposto de consumo do 4º distrito, nem nenhum dos seiscentos e quarenta e dous Luíses Gomes que vivem por aí. Eu sou o Luís Gomes primitivo e me considero o único legítimo. Os meus homônimos – e eles são legião – não direi que sejam apócrifos, mas são imitações.
Aclarado este ponto, acrescento que sou mineiro e que venho protestar contra a fundação da Escola de Medicina de Belo Horizonte.
Antigamente, nos bons tempos do Le Roy e da sangria, as doenças por cá eram poucas, mas chegavam para o gasto. Possuíamos a “barriga d’água”, o “nó nas tripas”, a “espinhela caída”, a “obstrução”, além da “catapora” e das “perebas” para uso das crianças. Os remédios eram também três ou quatro, e quando o doente não morria, sarava. Vieram os médicos e, em vez de descobrir novos remédios, começaram a inventar novas doenças. Uma das primeiras que arranjaram foi a neurastenia. No meu tempo o sujeito de maus bofes se chamava “malcriado” e curava-se a bordoadas. Hoje se chama neurastênico e trata-se a fosfatos. A doença de furtar era “ladroeira” e indicava o uso do relho; hoje é “cleptomania” e se lhe aplica a sugestão. O papo era “papo” mesmo, dado por Deus, e se tratava com uma pedra de sal e cuspo em jejum. Nunca vi nenhum curado com esse tratamento, mas ao menos sabia-se o remédio. Agora papo é “bócio” ou “esquizonotripaso não-sei-o-que”, quem o faz é o “barbeiro” e quem o desfaz não é ninguém, porque os médicos aboliram o nosso remédio e não arranjaram outro.
Antigamente morria-se pouco; hoje morre-se à toa, com a mesa de cabeceira cheia de remédios. Alguns atribuem isso à República que atrapalhou tudo. Outros, à de religião – o que eu não acredito porque meu pai era maçom e se não tivesse falecido, estava hoje com cento e vinte anos. Eu mesmo, que nunca tomei um purgante, estou com oitenta e cinco e daqui a quinze anos, com o favor de Deus, terei cem.
Por essas razões, acho que os médicos já são bastantes e que a Escola de Medicina de Belo Horizonte, além de inútil, é prejudicial. Os doutores já são demais; o de que precisamos é de lavradores.
A verdadeira medicina é a boa regra de vida. Para os que julguem a minha velhice robusta argumento mais convincente que dez seringas hipodérmicas, aí vão meus axiomas: “Dormir quanto queira; trabalhar quanto possa; comer quanto baste”.

Os bons convites antigos
antes de tudo se alçar,
eram para conversar
os parentes e os amigos
e não para arrebentar.

dizia o Sá de Miranda; e por isso não havia as “zangas de estômago”, nem as dispepsias, que apareceram com as ceatas modernas.
Enfim, Sr. R. Manso, peço-lhe que combata a Escola de Medicina de Belo Horizonte não com o argumento do Jornal do Commercio – falta de defuntos – porque isso os médicos arranjam; não haverá carestia. Os meus receios são os que já expus e outro, principal, que é ver nossas fazendas abandonadas. Dos meus cinqüenta e seis netos, 8 já são doutores em medicina, 5 em engenharia, 12 em leis, 15 em dentes e 9 em farmácia. Só consegui salvar para o trabalho 7, dos quais 4 abandonaram a charrua por empregos públicos. A todos os pais de família desta zona acontece a mesma infelicidade.
Se aparecer mais uma academia por aqui, quem ficará para lavrar a terra?
Peço-lhe responda ao seu
Ato. Vener. e Cr.
Luís Gomes

*   *   *

 Que hei de eu responder? Vou pensar sobre o caso, mas sem esperança. Da melhor vontade traspassarei esta meia coluna a quem achar solução ao angustioso problema do missivista.


Gazeta de Notícias, 5 de março de 1911.

domingo, 9 de agosto de 2015

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

R. Manso

O fumo

É uma tolice dizer que o fumo amortece e extingue a memória. Conheço vários credores que são fumantes.
“Pensamentos de João Simplício”

O fumo é um dos piores vícios. Não digo “o pior” porque este superlativo pertence, pela praxe, ao último que se está descompondo. Nos livros de moral para uso da infância, insultam-se os vícios separadamente. Começa-se, por exemplo, pelo jogo: “O jogo é um dos piores e mais horrendos vícios, etc...” Depois de bem desmoralizado o jogo e de afastado o receio de que a criança venha, algum dia, a cair na batota, agride-se o álcool: “Se o jogo é horrendo, pior ainda é o álcool”. Reduzido o álcool a trapos, rompem as hostilidades contra o fumo. “Há ainda um vício pior do que o jogo e o álcool, meus meninos; e vem a ser o fumo...” etc. Cada qual é pior do que os outros, de modo que o último é o pior de todos.
No livro que tenho aberto sobre a mesa todos os vícios são arrumados uns após os outros: o jogo, o fumo, a mentira, a crueldade com os animais, a introdução do dedo no nariz, o álcool, a calúnia e os riscos de carvão nos muros e paredes. O último, naturalmente, é o mais horrível. Vem descrito em cores tais, que me avivaram o remorso do primeiro (e último) retrato a carvão que fiz do meu professor primário. Não sei como agradecer a Deus ter-me livrado desse vício de riscar paredes, o qual, segundo o livro que tenho presente, arrasta tantos jovens à miséria, à doença, ao crime e até à cadeia.
Desse escapei; mas fui empolgado pelo fumo. O homem faz tanto sacrifício para contrair o hábito de fumar que, uma vez viciado, não quer mais perder o trabalho que lhe custou. Eu fui escravo do fumo durante muitos anos. Fumava cigarro, cachimbo e charuto; palha e papel; caporal, turco e goiano; desfiado, picado e lavado... Durante anos fiz projetos e mais projetos, planos sobre planos, de abandonar o fumo. Não que eu receasse perder a memória; absolutamente. Tenho visto fumantes que são capazes de lembrar-se dos 5$ que você lhe tomou emprestados no carnaval atrasado. O meu receio era dos seguintes males: “câncer”, “angina pectoris”, dispepsia, placas dos fumantes e outros. Por mais que desejasse fugir ao cigarro, não havia meio. Fazia um projeto sólido de manhã e fraturava-o antes do almoço. Ao meio-dia, formava resolução firme, atirava à rua os petrechos e deixava definitivamente de fumar – para pedir um cigarro a um amigo daí a meia hora. Recorri aos juramentos solenes, pela salvação da minha alma, pelas cinzas dos antepassados; mas caía em perjúrio à vista do primeiro charuto.
Um dia, finalmente, uma ideia genial me atravessou o espírito. Não foi conseqüência de meditação nem estudo, como as descobertas de Galileu e Newton, mas uma verdadeira inspiração divina. Encontrei ao cabo de tanto esforço, o meio de me libertar do fumo. Em vez de novos projetos e inúteis juramentos, não tomei resolução nenhuma – Deixei simplesmente de fumar. A minha descoberta consiste exatamente nisto: para livrar-se do fumo, o que se deve é “deixar de fumar” e não formar propósitos e juramentos.
Experimentem os fumantes.


Gazeta de Notícias, 14 de maio de 1911.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

João Sem Telha

Pseudônimo de Wladimir Bernardes.

RESTOS DE VALENTIA

A guerra que o Brasil, há 60 anos passados, se viu obrigado a manter com o Paraguai, pelo largo espaço de um lustro, deu ocasião a que o soldado brasileiro conseguisse assombrar o mundo com a demonstração admirável da sua resistência orgânica, aliada a uma incomparável temeridade.
A história da nossa Pátria, nesse duro período, está ornada de passagens heróicas onde os louros das vitórias foram colhidos pelos nossos mais célebres cabos de guerra, manu propria, no terreno regado de sangue pela chuva da metralhadora.
Os nomes de Caxias, Jaceguay, Barroso, Osório e tantos outros, são títulos de glórias que a esponja do tempo jamais poderá apagar do quadro de honra do Brasil; pena é, porém, que a garra adunca da Morte já tenha arrastado ao silêncio do túmulo a quase totalidade desses valorosos veteranos que tanto souberam zelar pela integridade dos nossos direitos.
Eu, felizmente, ainda conto com a amizade terrena do venerando general Carneiro de Sá, um dos únicos sobreviventes da grande guerra e que fez toda a campanha, como tenente do Estado-Maior, adido à Corte desta heróica cidade de S. Sebastião.
O general Sá, que orça pelos seus nevados 80 anos, ainda possui a antiga firmeza de caráter e o seu porte marcial infunde aos paisanos um sincero sentimento de admiração e respeito, quando ele conta as suas façanhas, se bem que o general Pires Ferreira afiance que a espada do seu colega é, até hoje, mais virgem que o vinho do Rio Grande.
Eu, porém, não acredito em semelhantes intrigas e mentiralhas e ontem pude julgar mais uma vez da coragem indomável do velho general Carneiro.
Estávamos, ele e eu, na Avenida Rio Branco, esquina da Assembléia, conversando em animada palestra sobre a nova organização do Exército, defendendo eu a missão francesa que o general atacava, quando uma forte detonação se fez ouvir para os lados da rua S. José.
O general Carneiro, sustendo a relação de suas proezas que, dizia ele, não tinham sido aprendidas com o estrangeiro, empalideceu repentinamente e perguntou-me assustado:
– Isso foi tiro, João?
– Qual, general; apenas qualquer estouro de pneumático, tornei tranqüilizador.
– Ah! porque se fosse tiro eu ia sentir de perto o cheiro da pólvora, retruca o velho militar, com o peito inflado de ardor belicoso, continuando a recapitulação dos seus atos de heroísmo.
Passavam, porém, uns dez minutos que a detonação fora ouvida, quando de nós ambos se acercou o dr. Jaime de Vasconcelos, algum tanto nervoso.
– Viram a tentativa de assassínio ali na esquina da rua S. José? Um desordeiro detonou o revólver contra um soldado do Exército, mas a bala perdeu-se...
– A detonação de há pouco foi tiro mesmo? perguntei eu curioso.
– Foi, sustentou o dr. Jaime.
– E a bala perdeu-se? inquire o bravo militar.
– Perdeu-se...
– Pois então corram, “seus paisanos”, porque bala não traz letreiro, diz-nos o valente general, desabalando sozinho pela Avenida afora, rumo da Sete de Setembro com toda a celeridade que as suas pernas trôpegas lhe permitiam...
E o dr. Jaime e eu, afrontando o perigo, nos dirigimos sorridentes para o local do crime.


O Jornal, 23 de abril de 1920.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

R. Manso

Alguns cálculos

O anatocismo não é, como algumas pessoas pensam, a membrana que reveste os ossos. Isso é cousa diferente e chama-se diafragma. Anatocismo é o ajuste prévio do pagamento de “juros de juros” e como tal proibido pela nossa legislação. Tal proibição é quase platônica, porque de seis em seis meses ou anualmente o devedor pode ser levado a regularizar sua conta capitalizando os juros vencidos.
Há porém um cavalheiro, ex-deputado por um dos Estados do Brasil (não pode haver indicação mais vaga), que descobriu um meio de sofismar a lei e até a moral. Esse cidadão empresta 95$ ao meio-dia para receber 100$ à hora do jantar, com a condição, não estipulada mas subentendida, de que o jantar será pago pelo mutuário. Sai o juro a 1 por cento, à hora. Podia ser de uma libra de carne; e era pior. O interessante é que se o devedor não paga o termo, o prestamista não faz dúvida nem escândalo. Capitaliza o juro com o capital e taxa 5 por cento ao dia. Assim, diariamente. Conheço um rapaz, leviano, que levantou nesse ex-deputado um empréstimo de 200$, e está muito tranqüilo; porque, diz ele, daqui a um ano, será o homem que deverá maior quantia na América do Sul. Somando-se as fortunas dos Srs. Gaffrée, Guinle, Leal não chegarão para saldar-lhe o débito. E ele tem esperança de vir a ser equiparado ao Paraguai, com as mesmas regalias, quando o Sr. Teixeira Mendes conseguir do Congresso a anistia da dívida desse país.
Desse ex-deputado conta-se que, residindo em uma chácara do Rio Comprido, durante as sessões, e não querendo pagar leite comprou, de sociedade com um colega, seu vizinho, uma vaca. Cada qual entrou com 150$. – Eu estou figurando que a hipótese da vaca ter custado trezentos mil réis. Se ela custou duzentos, evidentemente foi de cem mil réis a parte de cada um. Esta observação pode parecer desnecessária ao leitor arguto, mas gosto de ser claro – Comprou a vaca e mediu-a. Tinha ela dous metros e trinta centímetros, sem contar a cauda. Ele escolheu para si a metade posterior. No fim do mês, o vizinho, que não consumiu leite, foi procurar o sócio:
– Vim para ajustar as contas da nossa vaca.
– Ora... não precisava pressa.
– Como foi de experiência o primeiro mês?
– Muito bem. Em primeiro lugar, como nunca é conveniente a propriedade indivisa, medi a vaca: dous metros e trinta, e demarquei para mim um metro e quinze ma parte de trás. Passei um traço de tinta e você pode verificar. Durante o mês a minha parte produziu cento e vinte litros de leite que renderam 60$ e a sua não produziu cousa nenhuma. Ao contrário, consumiu trinta mil réis de alfafa que debitei na sua conta...
Com esse sujeito um dia me encontrei, em um carro da Central, de viagem para o interior. Eu estava fumando e ele dirigiu-se a mim:
– O senhor fuma muito?
Supondo que ele me quisesse disparar um sermão econômico ou higiênico, respondi:
– Fumo quatro charutos por dia, que a três tostões são mil e duzentos. Sei disso muito bem. Fica-me o vício em 36$ por mês e se eu o deixasse, economizaria 432$ por ano. Não ignoro. Sei bem que o fumo prejudica ao estômago, à memória e ao coração. De modo que, se o senhor deseja me catequizar, é inútil. É melhor guardar os seus argumentos para algum discurso na Câmara. Ou, então, vá converter sua avó.
Sem se alterar ele sacou um embrulho e disse-me:
– O senhor está enganado. Eu sou até apologista do fumo; e conhecedor. O senhor vai me comprar este cento de charutos por 10$ e depois me dirá se não valem o dobro...
Se isto não for autêntico, o diabo que me apareça.


Gazeta de Notícias, 23 de maio de 1911.