segunda-feira, 31 de agosto de 2015

R. Manso

Autonomia ou tirania?

Deus fez a fita de paisagem que se estende entre o Leme e Ipanema, debruou-a com uma franja de areia branca, sombreou o fundo com uma rampa de florestas, plantou, aqui e ali, cocurutos calvos, entre os morros cobertos de matas, soprou as ondas contra a praia e não querendo deixar ao abandono tal obra-prima, chamou Satanás e disse-lhe:
– Você quer tomar conta desta paisagem e conservá-la?
– Pois não, Altíssimo.
– E que salário exige?
– Ora, Altíssimo, essa pergunta até me ofende... Não aceito por interesse. Quero apenas lhe prestar um serviço. Zelarei por isto de graça, com tanto que o Altíssimo me dê inteira autonomia.
– Está feito.
Não tenho a estulta pretensão criticar os desígnios celestes, mas, tanto quanto as aparências permitem julgar, o negócio foi mau. O diabo entende “autonomia” no sentido antigo, na acepção grega da palavra e a exerce como um soberano caprichoso ou demente. Sua alma, sua palma. Eu sou um súdito seu efêmero. Vendi-lhe a minha tranqüilidade por dous anos em um documento firmado por minha mão, e chamado “contrato de locação”. Cumprida a pena, Deus pode me ajudar que eu vá descansar no Acre, ou em Cuiabá ou em qualquer outro lugar que saiba respeitar o barômetro, o termômetro e anemômetro.
Quando o diabo concedeu à Jardim Botânico o privilégio de bondes no seu bairro, impôs condições muito curiosas, por exemplo: não haver horário. De quando em quando, vêem-se três, cinco, oito bondes, encarneirados um atrás do outro. Depois somem-se. Você olha; nada! Espera; nada! Desespera; pior! Se quiser, então, um lugar seguro para descansar, pode estirar-se na linha e dormir com o pescoço em um dos trilhos e o tornozelo no outro, tranqüilamente.
Os postes de parada são tão distantes entre si, que os engenheiros ainda não conseguiram medir o intervalo. Há opiniões de que, entre um poste e o seguinte não medeia mais de um quilômetro. Outros dizem que esse cálculo é exagerado e evidentemente falso; que a distância não passa de novecentos e oitenta e poucos metros.
No verão o problema da espera do bonde fica muito simplificado: o aspirante a passageiro sai de casa, despede-se da mulher, fecha a cancela do jardim, abre o guarda-sol, marcha para o poste, espera uma hora, espera outra hora, cai de insolação, acode a Assistência, recolhe-o no automóvel, dá o atestado de óbito, contrata-se o enterro, prega-se a notícia à porta dos jornais, chora a família, vêm os amigos, etc., etc., etc. Mas na estação das águas o caso se complica, porque a chuva, no bairro, não cai de cima para baixo, como parece que devia ser, vem de baixo para cima como as fontes artesianas; é horizontal, paralela com o chão. De modo que, quando o morador é feliz de não demorar o bonde mais de quarenta ou cinqüenta minutos, entra no veículo, escorre e do resfriamento trata depois. Quando porém o carro está no horário regular, com intervalos de 120 minutos, o pretendente pode dissolver-se ou, na melhor hipótese, afogar.
O diabo rege o seu bairro como lhe apraz. Quando lhe acenam com a ameaça de intervenção, ele responde:
– Meu governo, do Leme a Ipanema, é autônomo. Autônomo vem do grego “auto”, próprio, e “nomos”, lei, regra. Não admito intrusões. O poder que tenho recebi-o de Deus. “Omnis potestas a Deo”.
E desapareceu com um estouro, deixando um cheiro a enxofre.
Tal governo não é autonomia, é tirania. Mas que se há de fazer?


Gazeta de Notícias, 13 de junho de 1911.

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