Alguns cálculos
O anatocismo não é, como algumas pessoas pensam, a membrana que reveste os ossos. Isso é cousa diferente e chama-se diafragma. Anatocismo é o ajuste prévio do pagamento de “juros de juros” e como tal proibido pela nossa legislação. Tal proibição é quase platônica, porque de seis em seis meses ou anualmente o devedor pode ser levado a regularizar sua conta capitalizando os juros vencidos.
Há porém um cavalheiro, ex-deputado por um dos Estados do Brasil (não pode haver indicação mais vaga), que descobriu um meio de sofismar a lei e até a moral. Esse cidadão empresta 95$ ao meio-dia para receber 100$ à hora do jantar, com a condição, não estipulada mas subentendida, de que o jantar será pago pelo mutuário. Sai o juro a 1 por cento, à hora. Podia ser de uma libra de carne; e era pior. O interessante é que se o devedor não paga o termo, o prestamista não faz dúvida nem escândalo. Capitaliza o juro com o capital e taxa 5 por cento ao dia. Assim, diariamente. Conheço um rapaz, leviano, que levantou nesse ex-deputado um empréstimo de 200$, e está muito tranqüilo; porque, diz ele, daqui a um ano, será o homem que deverá maior quantia na América do Sul. Somando-se as fortunas dos Srs. Gaffrée, Guinle, Leal não chegarão para saldar-lhe o débito. E ele tem esperança de vir a ser equiparado ao Paraguai, com as mesmas regalias, quando o Sr. Teixeira Mendes conseguir do Congresso a anistia da dívida desse país.
Desse ex-deputado conta-se que, residindo em uma chácara do Rio Comprido, durante as sessões, e não querendo pagar leite comprou, de sociedade com um colega, seu vizinho, uma vaca. Cada qual entrou com 150$. – Eu estou figurando que a hipótese da vaca ter custado trezentos mil réis. Se ela custou duzentos, evidentemente foi de cem mil réis a parte de cada um. Esta observação pode parecer desnecessária ao leitor arguto, mas gosto de ser claro – Comprou a vaca e mediu-a. Tinha ela dous metros e trinta centímetros, sem contar a cauda. Ele escolheu para si a metade posterior. No fim do mês, o vizinho, que não consumiu leite, foi procurar o sócio:
– Vim para ajustar as contas da nossa vaca.
– Ora... não precisava pressa.
– Como foi de experiência o primeiro mês?
– Muito bem. Em primeiro lugar, como nunca é conveniente a propriedade indivisa, medi a vaca: dous metros e trinta, e demarquei para mim um metro e quinze ma parte de trás. Passei um traço de tinta e você pode verificar. Durante o mês a minha parte produziu cento e vinte litros de leite que renderam 60$ e a sua não produziu cousa nenhuma. Ao contrário, consumiu trinta mil réis de alfafa que debitei na sua conta...
Com esse sujeito um dia me encontrei, em um carro da Central, de viagem para o interior. Eu estava fumando e ele dirigiu-se a mim:
– O senhor fuma muito?
Supondo que ele me quisesse disparar um sermão econômico ou higiênico, respondi:
– Fumo quatro charutos por dia, que a três tostões são mil e duzentos. Sei disso muito bem. Fica-me o vício em 36$ por mês e se eu o deixasse, economizaria 432$ por ano. Não ignoro. Sei bem que o fumo prejudica ao estômago, à memória e ao coração. De modo que, se o senhor deseja me catequizar, é inútil. É melhor guardar os seus argumentos para algum discurso na Câmara. Ou, então, vá converter sua avó.
Sem se alterar ele sacou um embrulho e disse-me:
– O senhor está enganado. Eu sou até apologista do fumo; e conhecedor. O senhor vai me comprar este cento de charutos por 10$ e depois me dirá se não valem o dobro...
Se isto não for autêntico, o diabo que me apareça.
Gazeta de Notícias, 23 de maio de 1911.
O anatocismo não é, como algumas pessoas pensam, a membrana que reveste os ossos. Isso é cousa diferente e chama-se diafragma. Anatocismo é o ajuste prévio do pagamento de “juros de juros” e como tal proibido pela nossa legislação. Tal proibição é quase platônica, porque de seis em seis meses ou anualmente o devedor pode ser levado a regularizar sua conta capitalizando os juros vencidos.
Há porém um cavalheiro, ex-deputado por um dos Estados do Brasil (não pode haver indicação mais vaga), que descobriu um meio de sofismar a lei e até a moral. Esse cidadão empresta 95$ ao meio-dia para receber 100$ à hora do jantar, com a condição, não estipulada mas subentendida, de que o jantar será pago pelo mutuário. Sai o juro a 1 por cento, à hora. Podia ser de uma libra de carne; e era pior. O interessante é que se o devedor não paga o termo, o prestamista não faz dúvida nem escândalo. Capitaliza o juro com o capital e taxa 5 por cento ao dia. Assim, diariamente. Conheço um rapaz, leviano, que levantou nesse ex-deputado um empréstimo de 200$, e está muito tranqüilo; porque, diz ele, daqui a um ano, será o homem que deverá maior quantia na América do Sul. Somando-se as fortunas dos Srs. Gaffrée, Guinle, Leal não chegarão para saldar-lhe o débito. E ele tem esperança de vir a ser equiparado ao Paraguai, com as mesmas regalias, quando o Sr. Teixeira Mendes conseguir do Congresso a anistia da dívida desse país.
Desse ex-deputado conta-se que, residindo em uma chácara do Rio Comprido, durante as sessões, e não querendo pagar leite comprou, de sociedade com um colega, seu vizinho, uma vaca. Cada qual entrou com 150$. – Eu estou figurando que a hipótese da vaca ter custado trezentos mil réis. Se ela custou duzentos, evidentemente foi de cem mil réis a parte de cada um. Esta observação pode parecer desnecessária ao leitor arguto, mas gosto de ser claro – Comprou a vaca e mediu-a. Tinha ela dous metros e trinta centímetros, sem contar a cauda. Ele escolheu para si a metade posterior. No fim do mês, o vizinho, que não consumiu leite, foi procurar o sócio:
– Vim para ajustar as contas da nossa vaca.
– Ora... não precisava pressa.
– Como foi de experiência o primeiro mês?
– Muito bem. Em primeiro lugar, como nunca é conveniente a propriedade indivisa, medi a vaca: dous metros e trinta, e demarquei para mim um metro e quinze ma parte de trás. Passei um traço de tinta e você pode verificar. Durante o mês a minha parte produziu cento e vinte litros de leite que renderam 60$ e a sua não produziu cousa nenhuma. Ao contrário, consumiu trinta mil réis de alfafa que debitei na sua conta...
Com esse sujeito um dia me encontrei, em um carro da Central, de viagem para o interior. Eu estava fumando e ele dirigiu-se a mim:
– O senhor fuma muito?
Supondo que ele me quisesse disparar um sermão econômico ou higiênico, respondi:
– Fumo quatro charutos por dia, que a três tostões são mil e duzentos. Sei disso muito bem. Fica-me o vício em 36$ por mês e se eu o deixasse, economizaria 432$ por ano. Não ignoro. Sei bem que o fumo prejudica ao estômago, à memória e ao coração. De modo que, se o senhor deseja me catequizar, é inútil. É melhor guardar os seus argumentos para algum discurso na Câmara. Ou, então, vá converter sua avó.
Sem se alterar ele sacou um embrulho e disse-me:
– O senhor está enganado. Eu sou até apologista do fumo; e conhecedor. O senhor vai me comprar este cento de charutos por 10$ e depois me dirá se não valem o dobro...
Se isto não for autêntico, o diabo que me apareça.
Gazeta de Notícias, 23 de maio de 1911.
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