Bom tom
Os manuais de bom-tom têm o defeito de ser muito resumidos e às vezes incompletos. Minha professora primária (Deus lhe reserve a melhor harpa do paraíso) dizia sempre que a primeira regra de bom-tom é a que proíbe introduzir-se, em público, o dedo no nariz. Durante muitos anos supus que fosse esse o princípio fundamental da boa educação. Hoje, porém, tenho alguma dúvida a esse respeito. Tenho percorrido manuais do bom-tom franceses, ingleses, italianos, espanhóis, inclusive as máximas do bom homem Ricardo, e nenhum deles se ocupa do nariz. Nem a menos referência.
Outra regra deficiente dos ditos manuais é a que manda, secamente, “dar precedência às senhoras nos veículos e lugares públicos”. Só tenho visto aplicada quando concorrem duas circunstâncias: a) de haver terceiras pessoas observando; b) da senhora em questão ser elegante e bem trajada.
Todavia a observância dessa regra não é tão rigorosa como se supõe. Uma professora, minha conhecida, afirma mesmo, categoricamente, que não há no Rio um só cavalheiro que a não infrinja. E ela fala com autoridade; porque nunca vi senhora mais meticulosa e educada. Terá talvez trinta anos no máximo, mas tal é a sua circunspecção que todos lhe dão cinqüenta. Alimenta-se apenas de bicarbonato de sódio, semanas e semanas seguidas, salvo nos domingos, em que se permite o luxo de um pouco de óleo de rícino. Quanto a bebidas é “tecto taler”, abstêmia completa, e se bebe um pouco de água de Janos, é por conselho do médico. Pois essa senhora distintíssima como é, me assegurou que nunca viu no Rio um cavalheiro lhe ceder o lugar no bonde, nem se afastar num trottoir estreito para ela passar, nem lhe emprestar o guarda-chuva, nem lhe apanhar o leque, nem a bolinar, nem nada...
Da sua experiência pessoa ela, por um método anticientífico, generaliza e conclui que os homens no Rio são indiferentes às senhoras.
Eu, pelo menos, não o sou.
Ainda ontem dei disso prova na Estação Central. Aproximava-me do guichê para comprar uma passagem, quando senti uma espetada ao lado. Era o cotovelo de uma senhora que abria o caminho para a bilheteria, acompanhada de outra, cujo rosto não me elucidou se era a sua avó ou neta. Talvez fosse irmã; o que é certo é que se chamava D. Estácia. Cedi-lhes a frente, como era meu dever, e fiquei ao lado à espera, embora com receio de perder o trem.
D. Estácia dirigiu-se à companheira:
– Lota, não compre ida e volta, porque talvez tenhamos de dormir lá.
– E se eles não estiverem em casa, havemos de ficar assim mesmo?
– Não. É melhor comprar ida e volta.
E introduzindo uma nota de 5$ no guichê pediu:
– Duas, de ida e vol...
Mas não pode terminar, porque a outra lhe puxou o braço, reclamando:
– Não senhora! não consinto! Era só o que faltava... Pois eu convido e você quer pagar? Não; deixe... Eu tenho aqui trocado.
– Mas eu preciso trocar essa nota. Tenho muita despesa que fazer e me falta dinheiro miúdo...
O trem apitou. Consultei o relógio impaciente. Já uma multidão se atropelava atrás de nós, murmurando. D. Estácia continuou:
– Não consinto. Tenha paciência!...
E vasculhando a bolsa:
– Gente!... Ora esta!... Quer ver que esqueci o dinheiro em casa? Mas não é possível... Eu me lembro de ter posto aqui duas pratas de mil réis e uma nota de 5$000.
O bilheteiro atalhou:
– Vamos. Façam o obséquio de despachar-se. Tenho que atender aos outros.
D. Estácia aproveitou a saída para o “impasse” em que se metera, oferecendo-se a pagar as passagens, sem dinheiro, e explodiu:
– Se eu tivesse um homem aqui, o senhor não me diria esse desaforo! Malcriado!... E não há aqui um homem, um ao menos, que tome a defesa de uma mulher desrespeitada?!...
Estas últimas palavras foram dirigidas, entre lágrimas, à minha direção. Como não gosto de ver ninguém chorar, afastei-me.
Um amigo, a quem propus iniciarmos uma campanha para a reforma do código do Bom-Tom, respondeu-me:
– Não me fale isso. O código do Bom-Tom é como a Constituição – intangível. Ambos devem continuar intactos. A questão é saber desrespeitá-los no momento oportuno.
Gazeta de Notícias, 16 de outubro de 1911.
Os manuais de bom-tom têm o defeito de ser muito resumidos e às vezes incompletos. Minha professora primária (Deus lhe reserve a melhor harpa do paraíso) dizia sempre que a primeira regra de bom-tom é a que proíbe introduzir-se, em público, o dedo no nariz. Durante muitos anos supus que fosse esse o princípio fundamental da boa educação. Hoje, porém, tenho alguma dúvida a esse respeito. Tenho percorrido manuais do bom-tom franceses, ingleses, italianos, espanhóis, inclusive as máximas do bom homem Ricardo, e nenhum deles se ocupa do nariz. Nem a menos referência.
Outra regra deficiente dos ditos manuais é a que manda, secamente, “dar precedência às senhoras nos veículos e lugares públicos”. Só tenho visto aplicada quando concorrem duas circunstâncias: a) de haver terceiras pessoas observando; b) da senhora em questão ser elegante e bem trajada.
Todavia a observância dessa regra não é tão rigorosa como se supõe. Uma professora, minha conhecida, afirma mesmo, categoricamente, que não há no Rio um só cavalheiro que a não infrinja. E ela fala com autoridade; porque nunca vi senhora mais meticulosa e educada. Terá talvez trinta anos no máximo, mas tal é a sua circunspecção que todos lhe dão cinqüenta. Alimenta-se apenas de bicarbonato de sódio, semanas e semanas seguidas, salvo nos domingos, em que se permite o luxo de um pouco de óleo de rícino. Quanto a bebidas é “tecto taler”, abstêmia completa, e se bebe um pouco de água de Janos, é por conselho do médico. Pois essa senhora distintíssima como é, me assegurou que nunca viu no Rio um cavalheiro lhe ceder o lugar no bonde, nem se afastar num trottoir estreito para ela passar, nem lhe emprestar o guarda-chuva, nem lhe apanhar o leque, nem a bolinar, nem nada...
Da sua experiência pessoa ela, por um método anticientífico, generaliza e conclui que os homens no Rio são indiferentes às senhoras.
Eu, pelo menos, não o sou.
Ainda ontem dei disso prova na Estação Central. Aproximava-me do guichê para comprar uma passagem, quando senti uma espetada ao lado. Era o cotovelo de uma senhora que abria o caminho para a bilheteria, acompanhada de outra, cujo rosto não me elucidou se era a sua avó ou neta. Talvez fosse irmã; o que é certo é que se chamava D. Estácia. Cedi-lhes a frente, como era meu dever, e fiquei ao lado à espera, embora com receio de perder o trem.
D. Estácia dirigiu-se à companheira:
– Lota, não compre ida e volta, porque talvez tenhamos de dormir lá.
– E se eles não estiverem em casa, havemos de ficar assim mesmo?
– Não. É melhor comprar ida e volta.
E introduzindo uma nota de 5$ no guichê pediu:
– Duas, de ida e vol...
Mas não pode terminar, porque a outra lhe puxou o braço, reclamando:
– Não senhora! não consinto! Era só o que faltava... Pois eu convido e você quer pagar? Não; deixe... Eu tenho aqui trocado.
– Mas eu preciso trocar essa nota. Tenho muita despesa que fazer e me falta dinheiro miúdo...
O trem apitou. Consultei o relógio impaciente. Já uma multidão se atropelava atrás de nós, murmurando. D. Estácia continuou:
– Não consinto. Tenha paciência!...
E vasculhando a bolsa:
– Gente!... Ora esta!... Quer ver que esqueci o dinheiro em casa? Mas não é possível... Eu me lembro de ter posto aqui duas pratas de mil réis e uma nota de 5$000.
O bilheteiro atalhou:
– Vamos. Façam o obséquio de despachar-se. Tenho que atender aos outros.
D. Estácia aproveitou a saída para o “impasse” em que se metera, oferecendo-se a pagar as passagens, sem dinheiro, e explodiu:
– Se eu tivesse um homem aqui, o senhor não me diria esse desaforo! Malcriado!... E não há aqui um homem, um ao menos, que tome a defesa de uma mulher desrespeitada?!...
Estas últimas palavras foram dirigidas, entre lágrimas, à minha direção. Como não gosto de ver ninguém chorar, afastei-me.
Um amigo, a quem propus iniciarmos uma campanha para a reforma do código do Bom-Tom, respondeu-me:
– Não me fale isso. O código do Bom-Tom é como a Constituição – intangível. Ambos devem continuar intactos. A questão é saber desrespeitá-los no momento oportuno.
Gazeta de Notícias, 16 de outubro de 1911.
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