sexta-feira, 6 de maio de 2016

R. Manso

História de incêndio


Andando no Tesouro atrás de um papel urgente que, segundo promessas muito positivas, será despachado antes de 1915, fui dar à 9a seção da 37a sub-diretoria, onde parei para tomar fôlego. O escriturário que tinha de registrá-lo no 623° protocolo saíra para tomar café.
“Tomar café” no Tesouro, é um eufemismo que serve para indicar a ausência temporária ou vitalícia de um funcionário. É tão inveterada ali essa linguagem que, quando se pergunta por um empregado destacado para o Acre ou Mato Grosso, o colega responde mecanicamente: “Saiu. Foi tomar café”. Como eu sei, por experiência própria, que o café de um escriturário leva a ser bebido pelo menos três horas, procurei uma cadeira e sentei-me.
O chefe da seção, diante de uma torre de papéis, conversava com um conhecido sobre o incêndio da Imprensa Nacional:
– Foi uma pena... Foi um grande prejuízo; mas senti não estar presente para ver a fogueira. Eu tenho muito medo de incêndios. Sempre digo aqui no Tesouro: “No dia em que cair um cigarro aceso numa cesta de papéis, este edifício pega fogo, que não se salvarão nem os alicerces”. Mas eles facilitam. E os fósforos de cera? É um perigo ainda maior. Se eu fosse o Congresso votaria uma lei proibindo expressamente a entrada de fósforos de cera nas repartições públicas. Eu vou lhe contar um caso de que estive me lembrando hoje de manhã, quando li os jornais. Foi na Bahia. Eu estava servindo na Delegacia Fiscal; eu e o Macedo. Que é dele?...
Estendeu o pescoço, verificou que o escriturário não estava e, vendo-me sentado resignadamente, disse:
– O senhor espere um pouco. O Macedo foi tomar café e volta já.
E continuou dirigindo-se ao amigo:
– É pena que o Macedo não esteja presente para você perguntar-lhe. Eu não gosto de gabar-me, mas nesse dia fiz um ato de heroísmo. Eu estava no teatro, quando chegou um contínuo esbaforido e disse: “A Delegacia Fiscal está pegando fogo!” Saí a toda pressa, encontrei a porta já arrombada e rolos de fumo a subirem por uma janela que ficara aberta. O meu chefe chegou nesse momento e disse-me: “Guimarães, que desgraça! Vai-se o arquivo todo da Delegacia e os processos que estão na minha mesa! Papéis tão importantes, que eu dava meus dois braços para salvá-los”.
Eu disse: – Os bombeiros podem salvá-los.
Ele disse: – Não chegarão mais a tempo.
Eu disse: – Se houvesse por aqui uma escada...
Ele disse: – Arranja-se uma.
Eu disse: – Pois arranje!
O chefe deu ordens e logo apareceu um sujeito com uma escada no ombro. Mandei encostá-la à janela, por onde saía o fogo... Ora! É pena o Macedo não estar presente para confirmar... posta a escada, perguntei:
 – Está bem firme?
Ele disse: – Está!
Quando pus o pé no primeiro degrau, o chefe me segurou pelo braço e o Macedo pelo paletó:
– Guimarães, não faça isso! Você tem família! É um sacrifício inútil! Você não pode atravessar as chamas!... Não vá! Somos nós que pedimos!
Mas eu disse:
– Tenham paciência! É meu dever e hei de cumpri-lo!
Eles então largaram-me e disseram:
– Pois suba! Sua alma, sua palma!
Eu fiz o sinal da cruz (porque sou católico), mandei dois populares segurarem a escada, para ela não escorregar e...
Nesse momento chegava um escriturário, com uma pena atrás da orelha. O chefe de seção, contrafeito, suspendeu a narrativa e dirigiu-se ao recém-chegado:
– Oh Macedo, eu estava contando aqui o incêndio da Delegacia Fiscal da Bahia. Protocole o papel desse moço que está esperando há boa meia hora.
Desejando saber o resultado da história, perguntei ao chefe:
– E o senhor entrou a tempo de salvar os papéis?
Ele me encarou com rancor, relanceou os olhos sobre o Macedo e respondeu com aspereza:
– Pois o senhor me acha com cara de idiota, de entrar em um edifício em chamas?
Até agora não sei a que atribuir a irritação do Sr. Guimarães. Interroguei-o com toda a cortesia. Não era caso para ele me dar aquela resposta.


Gazeta de Notícias, 18 de setembro de 1911.

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