segunda-feira, 5 de setembro de 2016

R. Manso

Como se leem jornais


Uma vez hospedei um conhecido de vista, do interior, o capitão Cristiano, que viera do sertão de Minas Novas ao Rio, cobrar uma antiga letra de 18$700, sem falar nos juros, que montavam a mais do dobro. O devedor, porém, não estava mais aqui. Supunha-se que andava pelo Espírito Santo. Antes de seguir-lhe no encalço, o capitão Cristiano resolveu demorar-se uma semana, para se refazer da viagem.
Homem excelente e muito versado em parentescos, o capitão descobriu que nós vínhamos a ser parentes por parte de uma D. Maria Francisca, que era prima em terceiro grau da avó dele Cristiano e cunhada do escrivão Manuel Antônio, o qual era por sua vez primo muito chegado, em quinto grau, ou talvez quarto, da mulher de um tio avô meu. Lembrei-lhe então que eu sabia de um parentesco entre nós mais estreito, e mais seguro, porque compreendia os dois ramos, paterno materno, e vinha a ser o fato, sem sombra de dúvida, de descendermos ambos, em linha reta, de Noé. Essa circunstância não havia ocorrido ao capitão Cristiano. E tão satisfeito ficou ele com a minha descoberta, que resolveu me favorecer com outra semana de hospedagem.
Ao fim de poucos dias eu conhecia toda a vida do capitão Cristiano. Era uma biografia simples, sem prólogo, pontada de episódios insignificantes: a sua nomeação para escrivão de paz, a compra de uma besta ruana, e duas facadas, fechando o segundo e terceiro capítulo. A certa altura havia um parêntese que, segundo minhas conjecturas, compreendia cinco anos, durante os quais não sei onde ele esteve, nem o que fez. Sei apenas que, nesse período ele aprendeu a fabricar cuités de chifre, cestas e peneiras de bambu e a odiar jurados.
Eu não gosto de ouvir a mesma história contada mais de três vezes. Quando o capitão começou a repetir a sua pela quarta, procurei um pretexto para levantar-me e dei-lhe um Jornal do Commercio, recomendando-lhe que lesse, que era muito interessante.
Retirei-me. Quando voltei a tarde, o capitão não tinha ainda saído do quarto. Na sala de jantar estava o queijo inteiro, em vez de meio, indício veemente de que o hóspede não merendara. Supondo-o doente, cheguei à porta do quarto. Silêncio. Por fim percebi um cicio. Juntei o ouvido à fechadura e percebi uma voz baixa a dizer:
– Quarenta e dois mil quinhentos e noventa e três; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e quatro; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e cinco; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e seis; quarenta e dois mil seiscentos e dois; quarenta e dois mil...
Chamei o Anatólio e disse-lhe:
– O capitão está doido. Vá buscar uma corda e coloque-se a um lado da porta. A cozinheira fique do outro, com um pau de vassoura. Eu o faço sair do quarto e quando disser: “Agarre, Anatólio!” você agarre mesmo, e firme. Está ouvindo?
– Sim, senhor.
Assim se dispôs. Cheguei à porta, com o revólver engatilhado, e antes de bater, escutei. O capitão continuava no mesmo tom:
– Quarenta e dois mil seiscentos e vinte um; quarenta e dois mil seiscentos e vinte e dois; quarenta e dois mil seiscentos e vinte e...
Espiei pela fechadura. Ele estava com os cotovelos na mesa, a suar em bicas, lendo o Jornal do Commercio...
Para resumir. O caso foi o seguinte: O capitão recebeu o Jornal e estava embebido na leitura da página, que era a lista dos números de apólices, de não sei qual Estado, sorteadas para resgate.
Se houvesse voltado a página, encontraria telegramas, seção livre e artigos interessantes.
Todo o jornal é necessário saber-se ler. Para não acontecer como a um negociante de Goiás que assinou a Gazeta e daí a 15 dias escreveu:
“Sr. gerente – Ainda não acabei de ler o primeiro número que me chegou da Gazeta e já estou com a mesa cheia de outras. Peço para mandar o jornal mais espaçado, porque tenho outras cousas que fazer. Seu criado, obrigado, etc.”
Tudo é conveniente saber. Até ler jornais. Até mesmo escreve-los.


Gazeta de Notícias, 24 de novembro de 1911.

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