quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

J. Brito

Enganos...

Esse caso do “suicida” de Niterói tem o seu lado agradável.
Agradável – é bom dizer – para o “ressuscitado”, porque para o outro não teve graça nenhuma.
Aqui, um Sr. Nunes, que tinha uma agência de casamentos, partiu para o Ignorado. Partiu, deixando cartas, dizendo que ia para lá mesmo. E foi para Niterói. Lá, na Praia Grande, havia um homem com o lindo nome de João Antunes de Castro Guimarães (não é o Sr. João Guimarães) a quem aprouve espairecer, ir passear, dar um giro na zona, sem dizer nada à família... Por uma fatalidade dessas que descem d’além e caem em Niterói, apareceu lá um cadáver. Um homem havia dado um tiro nos miolos e estava no Necrotério. Quem era? A família (ou os parentes) do Sr. João Antunes de Castro Guimarães foi ao Necrotério e reconheceu o cadáver. Era o cadáver do defunto. Entrou logo em despesas e fez um enterro “baita”! Ao saimento fúnebre compareceram todos os “grossos” de Niterói, até o juiz de direito.
Entrementes, o Sr. João Antunes de Castro Guimarães (não é, etc.) estava em Maricá, a ler os jornais. E tanto leu que deparou com um anúncio de missa de sétimo dia. E tanto firmou, que viu o nome do falecido. E tanto viu o nome, que acabou vendo que a missa era dele, era por alma dele...
Ora essa!... E leu mais que o enterro havia sido muito concorrido, e que toda a gente em Niterói “churava”, como diz certa atriz do Recreio. O “defunto” disse consigo: “vão agourar o boi!” e tomou o trem à pressa a ver se chegava em Niterói a tempo de assistir à “sua” missa de sétimo dia...
Chegou a tempo... Os herdeiros ainda não haviam feito o inventário. Tudo estava intacto. Ah! que susto!... E o Sr. João Antunes de Castro Guimarães (não é o Sr. João Guimarães) saiu a correr, de jornal em jornal, de Niterói e de cá, a dizer que não tinha morrido...
Foi sorte!... Afinal, o outro, o que morreu de verdade, não deixou de ter o seu enterro pomposo. Sempre foi uma última consolação. O Sr. João Guimarães há de lamentar também – coitado! – que quando morrer de verdade talvez não tenha um enterro tão “baita” como teve agora... para os outros.


Gazeta de Notícias, 22 de outubro de 1916.

R. Manso

Gazeta de Notícias, 7 de setembro de 1911.


Tibúrcio da Anunciação era o personagem central das “Cartas de um matuto”, seção muito popular da revista Careta. A seção, iniciada por Viriato Correia, era então escrita por Mário Brant e Aristides Rabelo.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

J. Brito

Modernismos...

As palavras, como os vestidos, entram e saem da moda. Atualmente uma delas que grita é a palavra “palace”. Usa-se atualmente “palace” para tudo. Há anos, logo depois da crisma do antigo teatro Casino (que passou a ser Palace Theatre) a palavra estacionou um poucochito. Não estava em moda... De dois anos para cá, desembestou, celebrizou-se. Hoje tudo é “palace”. Já há três hotéis, quatro cafés, duas casas de bilhetes de loteria, uma de “tolerância” e uma de “bicho”, com o nome de “palace”. A epidemia é pior do que a que houve há tempos com o nome de “Rio Branco”. Um carteiro do Correio, que já tinha no seu livro de notas 12 ruas com o nome de Rio Branco, 13 leiterias, 17 bazares, 19 restaurantes, 12 casas de bicho, 11 vendas, enlouqueceu no dia em que lhe disseram que a travessa do Senado também passava a ser rua Rio Branco; e depois desse dia nunca mais as cartas chegaram a seu destino. Primeiro que se acerte a qual das doze ruas do Distrito Federal se destina uma carta que traga o nome de Rio Branco, o destinatário morre de velho.
Agora, a moda é com a palavra “Palace”. Nas proximidades do largo de S. Francisco há o “Palace Sorte” (casa de bicho), na rua do Hospício há o “Palace Paradis” (casa que não é de bicho), mas o cúmulo é uma senhora que anuncia nos jornais e assina-se “Palace Mariquinhas” – francamente é demais! Percebe-se que ela se chama Mariquinhas da Silva, Mariquinhas da Boa Vida ou Mariquinhas Quinhentos Réis. Mas a moda tem uma grande força sugestiva. Como talvez essa senhora tenha lido por toda a parte a palavra “Palace”, como “Palace” é a palavra que está na moda, entendeu ela que era “chic” pra burro pôr o “Palace” no nome. E nem ao menos assina “Mariquinhas Palace”; o “chic” é antepor ao nome a palavra fatal: Palace Theatre, Palace Hotel, Palace Café, Palace Mariquinhas. Francamente, não nos falta ver mais nada...


Gazeta de Notícias, 20 de outubro de 1916.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

João Ribeiro

A Época, 10 de janeiro de 1888.

J. Brito

Uma mulher que vende o marido

Este é o título de uma notícia que me cai debaixo dos olhos. Uma senhora americana, milionária de Boston, Miss Agner Bedell Cuinay, propôs à Miss Mary Chondler, também milionária, passar-lhe o trambolho, que dá pelo nome de Frederick, e não tem vintém.
Quanto a preço? Mil dólares, apenas. Barato. Na nossa moeda quatro contos de réis. Um marido sem cheta por quatro contos é um pau por um olho. Há quem dê muito mais do que isso para... ver-se livro do trambolho que tem. Diz o jornal que a oferta foi aceita, porque Miss Chondler tinha um certo “facataz” pelo Frederick. Pela vice-versa da reciprocidade (e esta!) o Frederick – não obstante casado com Miss Agner Cuinay, ou talvez por isso mesmo – andava assim, “pelo beicinho”, roxo de paixão solapante, “doente” pela Miss Chondler. Resultado: essa “roxura” toda deu em resultado a Sra. Cuinay catrapiscar dos movimentos que eles faziam nos derretimentos do “flirt” e requerer o divórcio.
Muito bem. Não resta dúvida que Miss Cuinay, mesmo americana, teve sua “dorzinha” de... cotovelo, e ainda durante a ação, só para moer, escreveu à rival a seguinte carta:
“Vejo que tendes necessidade de um marido que cuide das vossas propriedades e que se faça de pai do vosso filho. Estou disposta a ‘vender-vos’ meu marido pela soma de mil dólares, dinheiro à vista. Ele é trabalhador e está cansado de sustentar a família. Nunca conseguimos chegar a um acordo em religião e de amigos. Ele ficara contente de viver convosco e ninar vosso filho. Eu prefiro ficar com o meu gato!”
À parte aquela “dorzinha”, a carta tem muito... – como dizer? – muito... americanismo. Preferia o gato – mas, primeiro, passe para cá os mil dólares, e à vista. “Estava cansado de sustentar a família, nunca chegara a um acordo, nem em religião, nem em amizades...” Muito direito tudo. Mas no fim, no sumo, no âmago, o que se vê? Aquela “dorzinha” da preferência de outra, o velho La Fontaine, a raposa, as uvas... O marido estava verde, não prestava, antes o gato – porque gostava doutra.
Ai! como este mundo é parecido, em todos os tempos, em todos os divórcios, mesmo entre as milionárias excêntricas!...

Gazeta de Notícias, 17 de novembro de 1916.

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Urbano Duarte

Humorismos


Há quatro dias que diversos jornais, anunciando a recomposição ministerial, noticiaram que o meu distinto amigo Lopes Trovão tinha sido convocado para gerir a pasta de instrução pública.
Todos estavam à espera da resposta do ilustre tribuno, e já constava ter ele preferido as relações exteriores, quando o Trovão diz ontem a um repórter que até aquele momento ainda não fora honrado com convite algum.
Isto faz-me lembrar uma passagem sucedida, no tempo da monarquia, com certo deputado, que ainda hoje o é (suponho eu, porque ando pouco a par da representação nacional).
Dando-se uma crise ministerial, começaram, como sempre, os consta e os boatos a respeito dos novos titulares.
Um jornal de grande circulação disse constar-lhe que seria chamado para a pasta do império o deputado M.
Este, cujo sonho dourado era andar pelas ruas de coupé e ordenanças com chapéu armado e cara de salvador da pátria, foi logo meter-se em casa, depois de ler o consta.
Morava, em companhia de um criado, num chalé situado no morro de Paula Matos.
Não tinha cozinha em casa; pela manhã tomava o seu café, lia os jornais, às 10 ½ ou 11 horas descia, almoçava no hotel, em seguida assistia à sessão, jantava às 6 depois bilontreava pelos teatros e rocios até à hora de voltar para casa, tarde da noite.
Foi para casa com o coração palpitante e esperou.
Ao ouvir ao longe qualquer coisa parecida com tropel de cavalos estremecia todo e o sangue lhe afluía ao coração.
Mas nada de soldados com ofício, nada de carta convidativa.
Nisto passa uma porção de horas, até que o estômago começa a reclamar os seus direitos, fazendo-lhes sentir que também está à espera que seja convidado para seu filet.
Ora em Paula Matos não havia hotel algum, nem mesmo daquelas casas de pasto cujos bifes, para serem engolidos, exigem dez minutos de mastigação e para serem trincados torna-se preciso agarra-los com as duas mãos, cravar os dentes, fazer finca-pé na parede e puxar, esticar até que o bruto estale como borracha.
A fome apertava, mas o homem não se atrevia a sair de casa receoso de que durante a sua ausência chegasse o soldado com a carta de convite.
Neste dia jantou sardinha de lata, pão e vinho zurrapa legítimo, daquele que tem gosto de tinta misturada com água de couve e Parati.
No dia seguinte almoçou sardinha e peixe de lata, com o mesmo vinho.
Estava resolvido a descer para jantar, quando vê que o gabinete ainda não estava organizado e ainda se falava no seu nome para a pasta do império.
Sardinha e mortadela para o jantar!
No dia seguinte, ao almoço, mortadela e sardinha!
Por fim desenganou-se, tomou o chapéu e veio para o hotel do Globo, onde soube que o novo ministério estava prontinho da Silva.
Daí em diante, sempre que corria o boato de crise ministerial, o Sr. M sentia na pituitária e nos nervos palatinos o gosto e o cheiro impertinente de sardinha de Nantes.


O Paiz, 8 de julho de 1891.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

R. Manso

O Abreu na Estrada de Ferro

O Abreu voltou encantado com o vale do Rio Doce. Nunca viu paisagem mais pitoresca, nem solo mais fértil.
– Em certos lugares a terra é tão fecunda, diz ele, que, plantando-se um prego, no dia seguinte nasce um poste de telégrafo. E as melancias? Só você vendo de que tamanho... Eles usam da polpa como alimento e da casca fazem canoas. Não dão barcos grandes; apenas para duas pessoas; mas servem.
Eu nunca surpreendi o Abreu numa patranha, mas tenho receio de que ele venha a ficar mentiroso, se continuar com essas histórias. Eis mais o que me disse:
– Como você sabe sou modesto, não gosto de chamar atenção para a minha pessoa. Por isso na viagem passei grandes contrariedades. Embarquei no rápido da Central, em um carro atulhado de passageiros. A certa altura, ao vir o condutor, puxei o meu bilhete e exibi-o. Notei logo que todos os olhos do vagão me examinavam. Atrás de mim armou-se mesmo uma discussão:
– É o conde Leal! dizia um.
– Não é! É o Gaffré! sustentava outro.
– Vocês estão muito enganados! atalhou um terceiro. Não é nem o Leal nem o Gaffré; esses dois eu conheço. Quem ele pode ser é o Penteado de S. Paulo.
Irritado, voltei-me para os contendores, e declarei meu nome, filiação, estado, naturalidade, profissão e residência. Eles se mostraram admirados e o que parecia mais considerável do grupo adiantou-se a dar-me explicações. Declarou-me que viajava na Central quase diariamente, havia cinco anos, e durante esse tempo só tinha visto pagar a passagem um inglês excêntrico; isto em 1907 ou 08. Como me vira exibindo o bilhete verde, tirara logo a conclusão de que eu era milionário. Em vista disso me pedia desculpas, etc. Nem por isso deixei de ser a notabilidade do comboio. Apontavam-me com o dedo e diziam uns aos outros: É aquele! Nas estações onde parava o trem, o condutor confabulava em voz baixa com um ou dois empregados, a notícia espalhava-se e, num instante, estavam todos se atropelando, aos empurrões na ânsia de me verem.
Em uma estação, já em Minas, entrou no carro um empregado de boné na mão e, com toda a cortesia me pediu um autógrafo. Pu-lo fora pela janela e a perseguição diminuiu um pouco. Mas durante toda a viagem (você sabe como o entusiasmo nacional se inflama facilmente) eu tive receio de encontrar a estação seguinte ornamentada com bambu e bananeiras, a banda de música na plataforma e um enorme dístico: “Salve! – Ao glorioso Abreu! – Que pagou sua passagem! – Na E. F.! – O povo agradecido!”.
Foi por esse motivo que resolvi sustar a excursão por trem de ferro e continuar a cavalo. A cavalo quer dizer: a burro. É um meio de condução muito bom, mas tem dois graves inconvenientes. O primeiro é que muitas pessoas não têm certa parte da anatomia suficientemente reforçada para resistir ao atrito do selim. O segundo é que nem todos têm altura bastante para enxergarem por cima das orelhas do macho. Quando trota de orelhas em pé, elas interceptam a paisagem.
Mas todos esses inconvenientes nada são comparados ao incômodo de viajar em estrada de ferro do Estado, com passagem comprada. Por isso na volta resolvi requisitar um passe, o qual me foi concedido imediatamente, por conta da verba destinada à: “Extinção de formigas”, do Ministério da Marinha.


Gazeta de Notícias, 30 de agosto de 1911.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Augusto Fábregas

Augusto Fábregas (1859 – 1893), jornalista e teatrólogo, foi autor da adaptação teatral de O crime do padre Amaro. Era redator d’O Paiz onde mantinha a seção “Aparas” com o pseudônimo de Tesoura.
O Paiz, 10 de março de 1888.

sábado, 17 de outubro de 2015

Silva Ramos

José Júlio da Silva Ramos (1853 – 1930)

Utilizou n’A Semana o pseudônimo de Júlio Valmor.

A Semana, 16 de dezembro de 1893.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

João Ribeiro

Da seção dominical "Sete Dias" de João Ribeiro n'O Paiz.


Creio que será por um móvel totalmente altruístico que os padres clamam contra o casamento civil.
Em verdade eles não tem um grande interesse nisso. Os padres não se casam. E dado que eles se casassem, o matrimônio civil ou religioso não os incompatibiliza com o casamento eclesiástico, de que eles tanto usam e abusam, há longo tempo.
Conta-se que no concílio de Trento, de que fazia parte D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, arcebispo de Braga, agitou-se a questão do celibato dos padres. 
D. Fr. Bartolomeu, que não confiava muito dos pastores lusitanos, dignos ascendentes do padre Amaro, pedia com instância o casamento dos eclesiásticos, e, vendo-se vencido pela assembléia em último lance, aventurou a súplica:
- Meus senhores! ao menos para os de Braga!
20 de julho de 1890

Hoje vieram as “Cousas do dia”; havia tempo que não vinham. E faziam saudades.
Diversos escritores as escrevem, com maestria e talento. Um deles, inteligência vigorosa, forte, sadia, tem, no entanto, os pequenos inconvenientes do escritor viajado.
Os homens viajados trazem no cérebro acamadas, sem classificação, em promiscuidade, todas as espécies de impressões. Tudo ali está aos pares, inconhos e indissolúveis; não sai uma boa pilhéria, sem ao mesmo tempo sair, da mesma vez, a pilhéria, a posição astronômica e o apontamento de viagem.
É inevitável.
Daí o homem das “Cousas” explicar, verbi gratia, a feijoada indígena pela feijoada minhota, condimentada com a broa lusitana e mais a indigestão internacional. Um gênero caro... diz-se... caro como um pêssego de Amarante.
E a gente fica no “ora veja”.
O diabo é o recurso da certidão. Se a gente pudesse dizer: – Espera aí, vou dar já um salto a Olivais – tudo iria muito bem.
Mas não sendo possível esse processo de verificação, eu proponho que as “Cousas do dia”, em vindo assim, se intitulem sinceramente, “Cousas do reino”.
Até porque nem lhe falta a pimenta de igual procedência.
22 de fevereiro de 1891

Também o frio abre o apetite; por isso é que eu vejo uma notícia de que a boemia literária procura fundar um clube de comes e bebes, o Clube Rabelais.
O nome é sensual demais, e quadraria melhor talvez a uma súcia de velhos e joviais celibatários. Como quer que seja, e por isso que desde a artinha de latim do padre Pereira o nome desceu à degradação de não ser mais que uma voz pela qual se conhecem as coisas, o Clube Rabelais tem intuitos mais regulares e menos intemperantes. Propõe-se apenas a resolver o problema da solidariedade literária. Esse problema, quase uma quadratura do círculo, tem ocupado a máxima meditação dos homens de letras. Chegou-se, parece, ao resultado de que a agremiação declamatória pelo soneto não era laço de coesão estável. Procurou-se, pois, em resumo, saber qual seria o pacto sagrado, religio, que pudesse ligar os homens de letras?
O Clube Rabelais é justamente uma solução; e ele propõe-se a determinar que aquele laço de solidariedade é, não pode deixar de ser, a tripa.
Os homens de letras, anárquicos, revolucionários, descontínuos, extravagantes, são susceptíveis de coordenação apenas pela barriga. É a única víscera comum que não foi deteriorada pela especialização letrada.
Eis como a comunidade do quitute pode levantar a literatura nacional.

Demais nessa instituição há uma certa continuidade ancestral. Os vates lusitanos freqüentavam os marqueses e faziam lamúrias pelos galinheiros dos fidalgos. Uma sátira do Tolentino custava uma galinha. Os Mecenas influíram propiciamente pela mesa e na literatura do tempo de Pombal para fazer surgir um poeta bastava uma trouxa de ovos.
17 de maio de 1891

 O Dr. Ataliba Gomensoro, ilustre literato e censor oficial do Conservatório, apareceu protestando contra uma suposta fadiga que lhe atribuíram por excesso de leituras dramáticas.
O emérito crítico tinha ganhado o primeiro prêmio em um concurso elegante por ser o homem da sociedade fluminense que tem os pés mais pequenos e que pisa melhor.
Era lícito que fosse chamado à cena, afim de que ao menos mostrasse que não dormia ainda em conseqüência de suas leituras e tinha a cabeça não menos bem formada e resistente a qualquer narcótico.
E assim, sem dar por isso, um homem ocupa a semana dos pés à cabeça.
Tenha paciência o ilustre crítico. Um homem que lê todas as peças que confluem ao Conservatório já não é ninguém neste mundo. É ao menos, para plagiar um velho e insípido calembur, uma vítima do ar cênico.

Eu considero, pois, o protesto do Sr. Dr. Ataliba como um grave sintoma de envenenamento produzido pela ação lenta e mortífera do drama. De todas as espécies literárias, inclusive o discurso opiáceo e o soneto constipador, não há uma só que apresente os caracteres mais definidos de tóxico terrível do que um drama com um prólogo, cinco atos e um epílogo. O veneno é principalmente violentíssimo quando ele vai rotulado em duplicata: José ou a Probidade vencedora; Reginaldo ou quinze anos de remorsos.
Isso então é a quinta-essência; é o ácido prússico em diálogo. 
7 de junho de 1891

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

J. Brito

PAPAGAIOS

Há papagaios que falam muito: que falam mesmo demais. Não vai nisso nenhuma alusão aos Srs. deputados. Aqui se trata de papagaios e não de “papagaios”; isto é: papagaios em redondo e não entre aspas. Trata-se de papagaios que são muito mais baratos ao Tesouro; que não ganham cem mil réis por dia; que não dizem desaforos nem cousas pesadas na Câmara...
São os inocentes “louros”. Entre esses – ia eu começando a dizer lá acima – há papagaios que falam muito, e papagaios que falam demais...
Há papagaios poetas e compositores. (Repito que não se trata aqui de deputados, e sim de papagaios de verdade). Há papagaios poetas e papagaios maestros. A atriz Judith Garcez possui um, que lhe mandaram de presente de Maceió (papagaio alagoano, patrício do Sr. Raimundo Miranda), que não só é um poeta inspiradíssimo, compondo quadras rimadas, como um maestro batuta, metendo em música as poesias que compõe.
Consta até – e isto eu digo muito em segredo – que o maestro Felipe Duarte tem apanhado “motivos” nas loas desse poeta sertanejo.
Expliquemos: o papagaio da Sra. Judith sabia, quando veio lá da terra de Raimundo, aquela cousa rococó que todo o papagaio sabe:

“Papagaio real,
pelo Portugal!
Quem passa, meu louro?
É el-rei que vai à caça!
Toca trombeta e caixa!
Toca, que el-rei passa!”

Pois muito bem. Este papagaio sertanejo chegou ao Rio na época carnavalesca, quando os nossos ouvidos estavam sendo martirizados por aquela popular canção do “Pelo telefone”, “Ai a Rolinha! Siô! Siô!”.
O “louro” da terra do sururu chegou e começou a ouvir aquela “martelação” diária nos ouvidos do próximo: não havia gramofone, realejo, moleque de rua, piano familiar, revista de ano (até uma do Raul, no Trianon) que não azucrinasse os ouvidos da humanidade com o “Ai! a Rolinha, Siô! Siô!”.
E o papagaio (“sarado” como todo alagoano que se preza) começou a adaptar o que já sabia à canção da moda no Rio. E é um gosto vê-lo agora, fazendo versos da cabeça dele, compondo músicas da cabeça dele, “combinar” a canção sertaneja que os papagaios aprendem no sertão com a caceteação urbana do “Pelo telefone”.
Ainda há dias cantava ele para um grande público:

“Papagaio real,
Siô Siô!
Pelo Portugal!
Siô Siô!
Quem passa, meu louro?
Siô Siô!
El-rei que vai à caça!
Siô Siô!”

E assim por diante. É um papagaio que faz versos e música; um papagaio que sabe “adaptar”, como muito original escritor teatral do Rio de Janeiro. E – que pena! – não ganha cem mil réis por dia, como o “papagaio” Raimundo, seu honrado patrício.

Gazeta de Notícias, 2 de junho de 1917.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

J. Brito

Boatos...

Francelino Petalógico era proprietário e redator-chefe de um órgão de grande circulação chamado O Boato. Jornal muito lido, com uma tiragem de seiscentos milhões de exemplares (não obstante dizerem que o Brasil é um país essencialmente... analfabeto) O Boato dá sempre dezesseis e dezoito edições por dia, no inverno, sendo que às vezes no verão chega ao máximo de 39 edições. Agora, com a guerra, e esta trepidação diária em que vivemos, como pintos em cima de uma chapa quente – o grande órgão O Boato começou a dar cousas sensacionais de cinco em cinco minutos. Às 7 horas da manhã (dantes O Boato era matutino) vinha a nota piramidolosa de que um corsário alemão tinha metido a pique 742 unidades inglesas no Mar de Espanha. Às 8 horas havia um carapetão maior com vítimas; às 11 o kaiser havia tomado quatro cidades inglesas e um rubinat autêntico para não ter uma indigestão real. Às duas da tarde (porque O Boato também era vespertino) havia uma edição aumentada, com títulos graúdos: grande batalha naval! A esquadra alemã encurralara 389 navios ingleses ao largo da Lagoa Rodrigo de Freitas.
 Puramente sensacional. Às 4 e meia da tarde o general Hindenburg jogava o “pocker” com o rei dos belgas, em Londres; às 2 da manhã (O Boato era matutino, vespertino, noturnino e madrugadino) rebentava em Niterói uma estralada germanófila, chefiada pelo Cardeal Arcoverde... As edições esgotavam-se rapidamente, de meio em meio minuto, aos milhões, bilhões de exemplares, que os gazeteiros vendiam por eletricidade...
Ainda ontem O Boato descobriu uma que é de se lhe tirar o chapéu. Uma revolução autêntica, o estouro da boiada, com cadáveres correndo pela Avenida Central, 18 couraçados alemãs no Canal do Mangue, dois submarinos no lago dos cisnes do Campo de Santana, e mais outro dentro de um chope que um alemão fingia beber na “terrasse” da Casa Cintra, antiga Castelões. Situação negra! Cousas pretas. A Áustria fizera já desembarcar, secretamente, oito ou dez batalhões de artilharia que estavam guarnecendo os centros estratégicos das ruas das Marrecas, Núncio, Tobias Barreto, S. Jorge e adjacências.
Última HoraO Boato dava sempre 13 e 14 “últimas horas” todos os dias. Dava mais do que um relógio. Tinha aparecido morto o cadáver de um alemão (suspeitado de alemão) que, depois de interrogado na Assistência, declarou que era inglês de Marrocos e que havia perdido ontem 2$500 no galo.
O Boato deve aparecer hoje tarjado de luto pela morte do Neves.


Gazeta de Notícias, 13 de maio de 1917.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

J. Brito

Magnífico

Essa deliciosa peça que o Exmo. Sr. Marquês de Cavalcanti acaba de pregar a alguns papalvos indígenas, merece bem um prêmio. O marquês merece ser promovido a duque.
Qualquer gajo bem falante que aí chega, vindo da Europa e da Civilização, enfeita-se logo com um título de conde, de marquês (até príncipes e princesas já temos tido, mais ou menos russas) e começa logo a embrulhar elegantemente o indígena que cai como um patinho. E é muitíssimo bem feito.
Esse Marquês de Cavalcanti (eu só escrevo Marquês com M grande, que é pra dar importância ao gajo e ao capítulo) usou de um “truc” curioso e galante, para enganar os tolos. Tinha ele para seu uso particular uma ‘mademoiselle’ com escritório de cartomancia à Avenida Central. Por meios indiretos, conseguia encaminhar para a graciosa cartomante os papalvos dinheirudos a que queria enganar. Antes, tinha o Sr. Marquês o especialíssimo cuidado de informar (particularmente) à Mademoiselle do passado, presente e futuro dos ditos camaradas – de modo que quando qualquer um deles, por mero acaso, chegava a ir consultar a elegante cartomante, ela lhe dizia cousas tão íntimas da sua vida passada, da sua vida presente, que o camarada tinha de acreditar por força no que ela ainda lhe dizia de sua vida futura.
E como anteriormente o finório do Marquês já tinha entabulado com esses dinheirudos amigos os seus “vantajosíssimos negócios”, Mademoiselle aludia vagamente, com o ar mais cândido deste mundo, sem uma previsão categórica e concisa (para não fazer desconfiar) que “eles de futuro iriam ser muito felizes, em um negócio que estavam fazendo com um titular muito rico...”
Percebe-se, heim?... Diabólico, heim?... Quem é que escapa de uma destas?... Se a mulherzinha havia adivinhado todo o passado, todo o presente – como duvidar de que ela não acertava também, adivinhando o futuro?...
Todos caíam... As notas de polícia dizem que o Marquês levava indiretamente para a Avenida as suas futuras vítimas, que ignoravam as suas relações com a cartomante...
Também, tinha graça que ele fosse confessar o “truc”...
É claro, meus amigos, que esse Marquês merece ser promovido a Duque.

Gazeta de Notícias, 22 de abril de 1917.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

R. Manso

A temperatura de Londres

O mercúrio agora em Paris, se não é invenção do telégrafo, anda pela altitude de 38°. Tive muita satisfação ao ler essa notícia, porque não sou egoísta e não desejo monopolizar as boas temperaturas para o meu país. Eleve-se o termômetro onde quiser em 10° ou 15° que não serei em quem lhe dê para baixo. Sou absolutamente destituído de inveja. Contanto que não venham mexer com os quarenta graus que gozamos à sombra neste delicioso bairro de Copacabana.
Em Londres, também o mercúrio se mantém em boa situação, conforme deduzo de um telegrama de ontem. Diz o despacho que o termômetro Fahrenheit está ali marcando 96,7° à sombra e que é essa “a mais alta temperatura que já foi ali registrada”. Noventa e seis graus e sete décimos Fahrenheit não dão idéia muito clara da emergência e para compreende-la tratei de reduzi-las à gradação centígrada. O resultado foi o seguinte.
Raciocinando que a escala Fahrenheit marca 212° para a água ferver e 32° para a fusão do gelo, tirei a conclusão de que os 100° centígrados correspondem a 189° Fahrenheit. Fiz a conversão de um caso simples de regra de três e obtive para a temperatura atual de Londres 63° centígrados, isto é: o calor do Acre e mais 25° de bonificação. Pareceu-me excessivo.
Para verificar a exatidão do cálculo, recorri ao Larousse, apliquei a fórmula que ele ensina e o resultado foi, felizmente: 6,5°. Isso me tranqüilizou um pouco mas, pensando melhor, considerei que 6,5° é uma temperatura que, para pessoas pouco experientes, pode passar perfeitamente por inverno. Em todo o caso, não produziria queixas e seria exagero chamar-lhe “a temperatura mais alta” que já se sentiu em Londres.
Fui ao Tratado de Física de Ganot, 22ª edição, completamente refundida, estudei o caso com atenção e apliquei a fórmula inculcada pelo autor. Resultado: 36 graus centígrados abaixo de zero.
É próprio dos sábios ter pouca confiança em si mesmo. Desconfiado dos meus cálculos, repeti-os, segundo fórmulas e explicações de Eisenmenger, Lenoir, Almanaque Hachette, Enciclopédia Britânica e Paul de Kock. Cada um desses autores deu resultado diferente. Afinal, por uma inspiração súbita cheguei, segundo me parece, à solução do problema. Eu possuo um termômetro Fahrenheit e outro centígrado (e aí reside, provavelmente, a minha vantagem sobre os autores citados). O método usado foi o de justaposição, ou melhor, de comparação. Uni os dois, de modo que o 0° centígrado coincidisse com o 32° Fahrenheit e verifique que a temperatura de 96,7° Fahrenheit corresponde a 72° centígrados. Isto com aproximação de um décimo, porque o meu termômetro Fahrenheit é cumprido, minucioso, de bom calibre, ao passo que o centígrado que serviu para a comparação é pequeno, quase capilar.
A temperatura que estão agora sofrendo os londrinos é, pois, de 72° centígrados, a um décimo de grau para mais ou para menos. É na verdade forte; mas, que hei de fazer?
Como não quero obrigar ninguém a aceitar a minha solução, em prejuízo das de outros autores, dou uma tabela dos resultados obtidos, segundo as formulas e conselhos de cada um deles:
96,7° da escala Fahrenheit correspondem, em graus da escala centígrada, segundo os seguintes autores:

Gazeta de Notícias, 11 de agosto de 1911.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

R. Manso

Empréstimos

“– Embora eu tivesse lido no tratado “De re rustica” de Catão, o sábio conselho de não emprestar nada a ninguém, emprestei a um amigo o meu kodak. Não só a câmara, como “filma”, papel, a lanterna vermelha, as cubas, banhos para revelar e fixar e os chassis. E ainda lucrei uns cinqüenta por cento na transação, porque embora eu seja muito amigo de X e aprecie profundamente mme X e adore o galante Chiquinho X, essa família adorável estava azedando a minha vida. Nos domingos davam-me logo cedo o prazer de uma visita e me honravam com a agradável tarefa de fotografar X sentado, e de pé, e de costas, e de joelhos, e saltando, e fumando, e não fumando, Chiquinho de cartola, e no velocípede, e montado na vassoura, e de camisa, e sem camisa, e puxando o rabo do gato... A princípio eu tirava as fotografias muito minuciosamente, repetindo as chapas que me pareciam imperfeitas. Quando a vizinhança entendeu de vir se retratar na minha câmara, inventei um sistema aperfeiçoado. Vinham os pretendentes.
– Querem se retratar?
– É isso mesmo que lhe vimos pedir.
– Em grupo ou isolados?
– Um de cada vez se puder.
– Posso, muito. Venha o primeiro.
Chegava um, sentava-se em frente ao aparelho, eu focalizava mais ou menos, apertava a pera do obturador: “Tlac”. Pronto! E chamava:
– Venha outro!
– Eu agora?
– Sim. Você mesmo. Tlac! Pronto! Mais outro!...
Assim eu retratava dez, vinte e mais. De uma vez fotografei cento e tantos habitantes de uma avenida próxima, todos por esse rápido processo. Terminada a tarefa, recebidos os agradecimentos, eu guardava o aparelho muito tranqüilamente, porque é claro que eu não havia carregado. Quando vinham buscar as provas eu respondia que se tinham inutilizado, e ficava por isso.
Ontem foi participar da minha sopa o comendador Leitão, e desejou fotografar-se no meu jardim, por gentileza para comigo. Como a minha câmara e mais petrechos estivessem em poder de X, mandei busca-los e tirei duas chapas do meu amigo: uma dele em pé, junto de um canteiro, cheirando uma rosa; outra, encostado à grade do jardim.
O comendador quis ver revelá-las, e entramos para a câmara escura. A primeira chapa deitada ao banho deixou logo ver umas linhas verticais.
– É a grade do jardim, disse ele, vá com cuidado. Tenho palpite que esse retrato está magnífico.
Continuei a revelar a chapa e, depois de alguns instantes, coloquei-a contra a luz. O vulto já estava se formando, mas ainda indeciso.
– Eu estou achando esquisito, disse o comendador. Na chapa parece que saí muito curvado...
Eu também estranhei, mas continuei a revelar.
Daí a pouco examinei de novo a negativa contra a luz. O comendador olhou-a, esfregou as pálpebras, tornou a olhar e com uma invectiva entre os dentes, abriu a porta e retirou-se. eu fiquei extático, estupefato, sem saber donde me saíra aquele urso. O que a princípio parecera grade do jardim eram os varais da jaula!
Pouco depois X mandava buscar as chapas de ursos e macacos que ele andava fotografando no Jardim Zoológico e me remetera por engano. Veja que estúpido engano! Custou-me a preciosa amizade do comendador Leitão.
Por isso cada vez mais me convenço de que devemos seguir os conselhos dos antigos. Catão quando condenou os empréstimos sabia o que fazia. No entanto ele não podia prever que esse costume viesse, no futuro, a produzir tal catástrofe...”
E o Abreu despediu-se desolado.


Gazeta de Notícias, 8 de agosto de 1911.

sábado, 19 de setembro de 2015

J. Brito

Gatunos amáveis

Está publicado que os Srs. Gatunos tomaram a providência de avisar, pelo telefone, os donos das casas que pretendem visitar.
Beneméritos, os Srs. gatunos!... Compreende-se que é um tanto aborrecido ser despertada uma pessoa, alta noite, ao grito de “ladrões em casa!”. É o susto, é o alarma, é o choque que interrompe um sono tranqüilo – e isso de despertar com um susto faz moléstia de coração, segundo a medicina antiga e moderna.
Assim, com o aviso prévio da “visita” logo à noite, os Srs. gatunos prestam um real serviço aos roubados. Dar-se-á que estes preferiam não receber a visita; mas entre ser roubado com um mau despertar, com surpresa, e esperar, calmamente, uma visita amável, se anuncia – francamente a escolha não é difícil: toda a gente prefere esperar a visita, ou com doces e vinhos, um baralho de “pocker”, ou com uma boa pistola, à vontade do freguês. Por isso, se verifica que os Srs. gatunos são gentis e amáveis com essa delicada lembrança do telefone.
Pessoas que falam de cadeira nessa matéria, tanto no capítulo “visitado”, como no capítulo “visitador”, dizem que é sempre uma felicidade a vítima não estar acordada... Se o visitador encontra a sua vítima acordada, ou se ela tem a triste idéia de acordar durante o “serviço”, é uma maçada! O gatuno tem de fazer valer os seus direitos, defender a liberdade, não perder o trabalho, e puxa da faca e... quase sempre acontece o que aconteceu à velha da mala de ouro da rua Goiás.
D parte do cavalheiro que recebe a visita, é sempre melhor estar no mais pesado do seu sono: o gatuno faz o serviço e vai, sem mais estrago. É sabido mesmo o caso de um rapaz nada valente que estava na cama, acordadinho da Silva, quando um rapinante lhe entrou sorrateiramente pelo quarto, pé ante pé... A vítima tomou logo a acertadíssima providência de fingir que estava dormindo – e assistir mudo e quedo à operação do outro que lhe levava tudo. Ao fim do serviço, quando o outro já ia embora, já tinha mesmo saído a porta, ele, o roubado, deitando um olho indagador fora das cobertas, animou-se a dizer, com voz tímida:
– Boa noite, seu gatuno.
Por isso essa idéia do aviso pelo telefone é excelente. Os tímidos tomarão a providência de... não estarem em casa.


Gazeta de Notícias, 8 de março de 1917.

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

R. Manso

Autonomia ou tirania?

Deus fez a fita de paisagem que se estende entre o Leme e Ipanema, debruou-a com uma franja de areia branca, sombreou o fundo com uma rampa de florestas, plantou, aqui e ali, cocurutos calvos, entre os morros cobertos de matas, soprou as ondas contra a praia e não querendo deixar ao abandono tal obra-prima, chamou Satanás e disse-lhe:
– Você quer tomar conta desta paisagem e conservá-la?
– Pois não, Altíssimo.
– E que salário exige?
– Ora, Altíssimo, essa pergunta até me ofende... Não aceito por interesse. Quero apenas lhe prestar um serviço. Zelarei por isto de graça, com tanto que o Altíssimo me dê inteira autonomia.
– Está feito.
Não tenho a estulta pretensão criticar os desígnios celestes, mas, tanto quanto as aparências permitem julgar, o negócio foi mau. O diabo entende “autonomia” no sentido antigo, na acepção grega da palavra e a exerce como um soberano caprichoso ou demente. Sua alma, sua palma. Eu sou um súdito seu efêmero. Vendi-lhe a minha tranqüilidade por dous anos em um documento firmado por minha mão, e chamado “contrato de locação”. Cumprida a pena, Deus pode me ajudar que eu vá descansar no Acre, ou em Cuiabá ou em qualquer outro lugar que saiba respeitar o barômetro, o termômetro e anemômetro.
Quando o diabo concedeu à Jardim Botânico o privilégio de bondes no seu bairro, impôs condições muito curiosas, por exemplo: não haver horário. De quando em quando, vêem-se três, cinco, oito bondes, encarneirados um atrás do outro. Depois somem-se. Você olha; nada! Espera; nada! Desespera; pior! Se quiser, então, um lugar seguro para descansar, pode estirar-se na linha e dormir com o pescoço em um dos trilhos e o tornozelo no outro, tranqüilamente.
Os postes de parada são tão distantes entre si, que os engenheiros ainda não conseguiram medir o intervalo. Há opiniões de que, entre um poste e o seguinte não medeia mais de um quilômetro. Outros dizem que esse cálculo é exagerado e evidentemente falso; que a distância não passa de novecentos e oitenta e poucos metros.
No verão o problema da espera do bonde fica muito simplificado: o aspirante a passageiro sai de casa, despede-se da mulher, fecha a cancela do jardim, abre o guarda-sol, marcha para o poste, espera uma hora, espera outra hora, cai de insolação, acode a Assistência, recolhe-o no automóvel, dá o atestado de óbito, contrata-se o enterro, prega-se a notícia à porta dos jornais, chora a família, vêm os amigos, etc., etc., etc. Mas na estação das águas o caso se complica, porque a chuva, no bairro, não cai de cima para baixo, como parece que devia ser, vem de baixo para cima como as fontes artesianas; é horizontal, paralela com o chão. De modo que, quando o morador é feliz de não demorar o bonde mais de quarenta ou cinqüenta minutos, entra no veículo, escorre e do resfriamento trata depois. Quando porém o carro está no horário regular, com intervalos de 120 minutos, o pretendente pode dissolver-se ou, na melhor hipótese, afogar.
O diabo rege o seu bairro como lhe apraz. Quando lhe acenam com a ameaça de intervenção, ele responde:
– Meu governo, do Leme a Ipanema, é autônomo. Autônomo vem do grego “auto”, próprio, e “nomos”, lei, regra. Não admito intrusões. O poder que tenho recebi-o de Deus. “Omnis potestas a Deo”.
E desapareceu com um estouro, deixando um cheiro a enxofre.
Tal governo não é autonomia, é tirania. Mas que se há de fazer?


Gazeta de Notícias, 13 de junho de 1911.

domingo, 23 de agosto de 2015

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

R. Manso

Um informante em apuros

Telegrama de ontem, de São Paulo: “Chegou aqui, domingo, o conselheiro Teixeira de Abreu, lente de direito civil ma Universidade de Coimbra, autor de obras jurídicas notáveis e que vem fazer o estudo do direito brasileiro”.
Se o conselheiro Teixeira atravessou o Atlântico para estudar, deste lado, o ramo jurídico de sua especialidade (como é de presumir-se), S. Ex. caiu no maior conto do vigário em que é possível a um homem cair durante a sua vida, ou em duas ou três vidas, mesmo que cada uma delas seja de trezentos anos.
A decepção que vai ter, ou que já teve, é dessas que levam um homem à cama (ou à rede, se ele for nortista), e exigem meses para convalescença.
O cavalheiro que for encarregado de servir de cicerone ao lente de Coimbra, poderá diminuir-lhe o abalo da decepção, se seguir o plano que indico. Basta observar-lhe as linhas gerais; os detalhes podem variar de acordo com as necessidades estratégicas.
 Enquanto estiver sendo trafegado pela Avenida Paulista, Parque da Antártica, Cantareira e outros arredores da cidade, o conselheiro não terá ocasião de indagar pelo nosso direito. O perigo é quando se acabarem os passeios. O conselheiro dirá mais ou menos o seguinte:
– Bem. Está tudo muito bonito. Dou sinceramente parabéns ao Brasil de possuir uma cidade como S. Paulo. No meu país não há cousa melhor...
– É modéstia de V. Ex.! deve interromper o cicerone.
– Não. Não é modéstia. Mas não vim ao Brasil como turista. Vim examinar, estudar o direito brasileiro...
– Com muito prazer! Acudirá o cicerone; e, fazendo-se de tolo: Direito penal, não?
– Não senhor...
–Ah, sei... Quer ver o nosso Direito Constitucional. Compreendo agora. A constituição brasileira não se acha em bom estado. Também já está servindo há vinte anos; é natural...
– Não é isso também que me interessa.
– Então é o Direito Comercial... Eu devia ter percebido a mais tempo que V. Ex. desejava ver o nosso Direito Comercial. Temos um código excelente. E grosso. E boas leis extravagantes sobre falência, notas promissórias e operações de câmbio. Vou mandar buscar um volume...
Esse jogo não pode continuar indefinidamente. Há de chegar a hora em que o conselheiro Teixeira de Abreu, se o cicerone não tiver escapulido antes, lhe dirá:
– O senhor está fugindo com o braço à seringa. Entendo muito bem. Toda a gente sabe que sou lente de Direito Civil em Portugal e o que quero ver é o Direito Civil brasileiro. Que é do seu código?
– Código? Ah, sim, o senhor alude ao Código Civil, não é? A Constituição imperial já se referia a ele. O conselheiro Nabuco andou com ele às voltas. Teixeira de Freitas organizou um trabalho importante. Houve depois o do Joaquim Felício, do Coelho Rodrigues, do Clóvis Beviláqua...
– Nada disso me importa. Quero saber da sua legislação civil – atual – Que é dela?
Esgotados os recursos, o cicerone poderá confessar, preparando o terreno, mastigando as palavras:
– Legislação civil? É verdade... o senhor não se assuste... a culpa não é nossa... estas cousas acontecem... nós... nós... nós... não a temos...
– Não a tem?... exclamará o conselheiro dando um salto na cadeira.
– Não, senhor. A que estamos usando está fora de moda, com as mangas curtas, apertada nas cavas. Foi-nos dada por D. Filipe, per graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar, em África senhor de Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia e Brasil, no ano de Cristo de 1603.
– A ordenação Filipina!
– Exatamente, conselheiro.
Esta resposta dará o cicerone se for homem de sangue frio, pouco acessível à influência do sangue no rosto. No caso contrário, deverá fugir sem resposta. Porque é duro confessar a um português que o grosso do nosso direito civil consta de uma compilação lusitana, que foi julgada inadequada em 1642, condenada por Pombal em 1775, e atirada ao lixo, pelo seu país, há muitas décadas.


Gazeta de Notícias, 1 de junho de 1911.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

João Sem Telha

A inteligência do Zequinha

Os pais, por um sentimento de orgulho amoroso muito desculpável, mal lhes nasce um filho, acostumam-se logo a gabar no petiz, certas qualidades e aptidões que as pessoas estranhas e o próprio inocentinho, ignorariam para todo o sempre, se não fossem prevenidos.
A perversão dos sentidos paternos é inevitável quando estes tratam de decifrar a seu modo, os monossílabos inconscientes e as atitudes despretensiosas do “rebento encantador” que, com o cérebro ainda dominado pelas exigências do estômago, só se interessa pela hora do “de mamar”. Para o ouvido maravilhado dos pais, o irrefletido “pá-pá-pá” balbuciado pela criancinha, tanto pode significar: “papai”, como “mamãe, tetéia, angu” ou biscoito. Tudo, para isso, depende de ocasião.
La Fontaine, na sua fábula da Águia e da Coruja mostrou a quanto pode chegar o grau de perturbação mental de uma mãe, quando fez o pássaro de Minerva, chamar de “mignons, beaux, bien faits et jolis” aos seus filhotes horrendos e repugnantes. E este mundo anda cheio de mães-corujas que, no entanto não deixam de querer ser “águias” quando debicam nas outras mães os mesmo defeitos e exagero que elas também possuem.
Mas o que os pais fazem mais empenho em exalçar para os estranhos, é a inteligência dos filhos. Quem já não ouviu um de três anos cantarolar “par secousses”, ajudado pelo papai ou pela mamãe, os versinhos da cantiga da época? Quem já não teve notícias pela boca de um pai extremoso das respostas inteligentes e ousadas que seu filho, de 4 anos lhe dá, a todos os instantes?
Ainda ontem, à tarde, viajava eu em um bonde do Ipanema em companhia do dr. Samuel Mosqueira, com destino a sua residência da rua N. S. de Copacabana onde pretendia jantar, quando na altura do Largo do Machado o dr. Samuel, como visse um garoto vendedor de jornais de uns 6 anos presumíveis insultando o condutor do bonde com palavras e gestos obscenos, começou a contar-me a precocidade do seu Zequinha, “enfant terrible” e inteligentíssimo de 5 anos incompletos.
– O meu Zequinha, disse-me o dr. Samuel, não é por seu meu filho, mas sempre foi muito adiantado. O que aquele “diabinho” faz é de causar pasmo a qualquer. Sem ninguém lhe ter ensinado, já sabe cantar todo o “Pois não” do Eduardo Pinto e toca com dois dedinhos o “Vem cá Bitu” do maestro Oswaldo Guerra!...
Na altura do Túnel Novo, o Zequinha já ligava palavras dissilábicas e raciocinava como gente grande, metendo o bedelho na conversa dos maiores.
Ao saltarmos no ninho da “águia”, ele de tão sabido já não ligava importância aos meninos da sua idade, sempre às voltas com seus livros de figuras.
Eu estava ansioso por conhecer, aos cinco anos, o provável substituto de Rui Barbosa na nossa mentalidade futura, e a maldita curiosidade levou-me a exigir a aparição do prodígio, mal transpus os umbrais do salão de visitas do dr. Samuel.
Este não se fez de rogado. Apertando um botão elétrico, chamou um criado e disse-lhe, com a voz cheia de orgulho: – Vá buscar o meu Zequinha...
Vastos minutos se passaram. A conversa já fugira para outro assunto, quando Madame Mosqueira, visivelmente contrariada, penetrou no salão, a reclamar:
– Samuel, vá ver o Zequinha... Está num berreiro dos diabos, há mais de quatro horas, lá no fundo do quintal!...
– Mas o que tem ele?!
– Nada; apenas abriu um buraco no terreno e, agora, quer por força carregá-lo cá pra dentro.
E eu, enquanto o casal ia à cata do teimoso, escapuli-me pelo portão, para que eles, a sós, saboreassem melhor a nova demonstração do intelecto do “prodígio”.


O Jornal, 6 de janeiro de 1920.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

J. Brito

 José Ângelo Vieira de Brito ficou mais conhecido com o pseudônimo de J. Brito.

Escreveu crônicas humorísticas com o pseudônimo de Antônio em A Notícia e na Gazeta de Notícias.
 
PARTIDA


Américo, muito amigo de pregar “partidas”, sabendo que o Vieira estava sem vintém, chegou-se-lhe misteriosamente ao pé do ouvido e disse baixo como numa revelação:
– Sabes? o Manduca está cheio de dinheiro!
Antes disso já ele havia sondado o “espírito financeiro” do Manduca, e sabia que ele estava... como o Vieira: “limpo”. Pregara-lhe a mesma partida “partida”, soprando-lhe ao ouvido:
– Sabes?... o Vieira está com uma bruta bolada!
Feito isso, preparado o terreno da intriga, o pilhérico Américo fechou-se em copas. À pequena distância, começou a observar a atitude dos dous: eram dous “prontos” entre si, cada um deles julgando que o outro estava “cheio”. Primeiro o Manduca teve para Vieira um sorriso inexpressivo, sorriso de pronto para homem que tem dinheiro; a esse sorriso o Vieira correspondeu com outro, mais afetuoso; e começou entre os dous uma espécie de namoro correspondido, com olhares significativos, sorrisinhos, concordâncias, etc., etc. Por fim, os dous falaram-se, pois se davam. O Vieira começou:
– Ah! seu Manduca, deve ser uma cousa horrível quando um camarada não tem dinheiro...
– Oh! sim, deve ser... Calculo... Deve ser horrível. Eu felizmente...
– Também eu. Só sei disso por ouvir dizer.
– Graças a Deus, sempre consigo...
– Eu também. Mas deve ser horrível.
O Vieira teve assim a confirmação de que o Manduca tinha “algum”. Convidou-o para tomar “alguma cousa”. Beberam, olharam-se, sorriram-se... Cada um deles com uma doida vontade de dar o bote no outro. Na hora de pagar, o Manduca “coçou-se”; igualmente “coçou-se” o Vieira; das duas coçadelas não saiu nada. Ambos olharam o espaço azul; passou-se um longo minuto. O Vieira coçou-se de novo. Ambos estavam com muita coragem, porque cada um sabia que o outro “garantia”. Por fim o Manduca falou:
– Tens miúdos aí?
– Não.
– É porque eu não tenho trocado...
– Também eu trocado não tenho...
– Então vamos trocar.
– Vamos.
– Troca lá, porque eu não tenho para trocar.
– Também eu, para trocar não tenho...
– Mas você não está cheio de dinheiro?
– Deixa de pilhéria. Você é que está.

________

A discussão não acabou porque o Américo rebentou na gargalhada e pagou a despesa.


Gazeta de Notícias, 21 de janeiro de 1917.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Alfredo Riancho

Minas Gerais, 1 de agosto de 1894.

R. Manso

A escola de Medicina em Belo Horizonte


Escreve-nos o Sr. Luís Gomes:
“Belo Horizonte, 2 de março
Sr. R. Manso – Saúde. Antes de entrar em assunto devo explicar-lhe que não sou o diretor da Estrada de Ferro Recife-Cádiz, nem o ministro português, nem o médico da Leopoldina que está soldando as pernas dos descarrilados da estação Muniz Freire, nem o juiz de direito do Rio Pardo, nem o fiscal de imposto de consumo do 4º distrito, nem nenhum dos seiscentos e quarenta e dous Luíses Gomes que vivem por aí. Eu sou o Luís Gomes primitivo e me considero o único legítimo. Os meus homônimos – e eles são legião – não direi que sejam apócrifos, mas são imitações.
Aclarado este ponto, acrescento que sou mineiro e que venho protestar contra a fundação da Escola de Medicina de Belo Horizonte.
Antigamente, nos bons tempos do Le Roy e da sangria, as doenças por cá eram poucas, mas chegavam para o gasto. Possuíamos a “barriga d’água”, o “nó nas tripas”, a “espinhela caída”, a “obstrução”, além da “catapora” e das “perebas” para uso das crianças. Os remédios eram também três ou quatro, e quando o doente não morria, sarava. Vieram os médicos e, em vez de descobrir novos remédios, começaram a inventar novas doenças. Uma das primeiras que arranjaram foi a neurastenia. No meu tempo o sujeito de maus bofes se chamava “malcriado” e curava-se a bordoadas. Hoje se chama neurastênico e trata-se a fosfatos. A doença de furtar era “ladroeira” e indicava o uso do relho; hoje é “cleptomania” e se lhe aplica a sugestão. O papo era “papo” mesmo, dado por Deus, e se tratava com uma pedra de sal e cuspo em jejum. Nunca vi nenhum curado com esse tratamento, mas ao menos sabia-se o remédio. Agora papo é “bócio” ou “esquizonotripaso não-sei-o-que”, quem o faz é o “barbeiro” e quem o desfaz não é ninguém, porque os médicos aboliram o nosso remédio e não arranjaram outro.
Antigamente morria-se pouco; hoje morre-se à toa, com a mesa de cabeceira cheia de remédios. Alguns atribuem isso à República que atrapalhou tudo. Outros, à de religião – o que eu não acredito porque meu pai era maçom e se não tivesse falecido, estava hoje com cento e vinte anos. Eu mesmo, que nunca tomei um purgante, estou com oitenta e cinco e daqui a quinze anos, com o favor de Deus, terei cem.
Por essas razões, acho que os médicos já são bastantes e que a Escola de Medicina de Belo Horizonte, além de inútil, é prejudicial. Os doutores já são demais; o de que precisamos é de lavradores.
A verdadeira medicina é a boa regra de vida. Para os que julguem a minha velhice robusta argumento mais convincente que dez seringas hipodérmicas, aí vão meus axiomas: “Dormir quanto queira; trabalhar quanto possa; comer quanto baste”.

Os bons convites antigos
antes de tudo se alçar,
eram para conversar
os parentes e os amigos
e não para arrebentar.

dizia o Sá de Miranda; e por isso não havia as “zangas de estômago”, nem as dispepsias, que apareceram com as ceatas modernas.
Enfim, Sr. R. Manso, peço-lhe que combata a Escola de Medicina de Belo Horizonte não com o argumento do Jornal do Commercio – falta de defuntos – porque isso os médicos arranjam; não haverá carestia. Os meus receios são os que já expus e outro, principal, que é ver nossas fazendas abandonadas. Dos meus cinqüenta e seis netos, 8 já são doutores em medicina, 5 em engenharia, 12 em leis, 15 em dentes e 9 em farmácia. Só consegui salvar para o trabalho 7, dos quais 4 abandonaram a charrua por empregos públicos. A todos os pais de família desta zona acontece a mesma infelicidade.
Se aparecer mais uma academia por aqui, quem ficará para lavrar a terra?
Peço-lhe responda ao seu
Ato. Vener. e Cr.
Luís Gomes

*   *   *

 Que hei de eu responder? Vou pensar sobre o caso, mas sem esperança. Da melhor vontade traspassarei esta meia coluna a quem achar solução ao angustioso problema do missivista.


Gazeta de Notícias, 5 de março de 1911.

domingo, 9 de agosto de 2015

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

R. Manso

O fumo

É uma tolice dizer que o fumo amortece e extingue a memória. Conheço vários credores que são fumantes.
“Pensamentos de João Simplício”

O fumo é um dos piores vícios. Não digo “o pior” porque este superlativo pertence, pela praxe, ao último que se está descompondo. Nos livros de moral para uso da infância, insultam-se os vícios separadamente. Começa-se, por exemplo, pelo jogo: “O jogo é um dos piores e mais horrendos vícios, etc...” Depois de bem desmoralizado o jogo e de afastado o receio de que a criança venha, algum dia, a cair na batota, agride-se o álcool: “Se o jogo é horrendo, pior ainda é o álcool”. Reduzido o álcool a trapos, rompem as hostilidades contra o fumo. “Há ainda um vício pior do que o jogo e o álcool, meus meninos; e vem a ser o fumo...” etc. Cada qual é pior do que os outros, de modo que o último é o pior de todos.
No livro que tenho aberto sobre a mesa todos os vícios são arrumados uns após os outros: o jogo, o fumo, a mentira, a crueldade com os animais, a introdução do dedo no nariz, o álcool, a calúnia e os riscos de carvão nos muros e paredes. O último, naturalmente, é o mais horrível. Vem descrito em cores tais, que me avivaram o remorso do primeiro (e último) retrato a carvão que fiz do meu professor primário. Não sei como agradecer a Deus ter-me livrado desse vício de riscar paredes, o qual, segundo o livro que tenho presente, arrasta tantos jovens à miséria, à doença, ao crime e até à cadeia.
Desse escapei; mas fui empolgado pelo fumo. O homem faz tanto sacrifício para contrair o hábito de fumar que, uma vez viciado, não quer mais perder o trabalho que lhe custou. Eu fui escravo do fumo durante muitos anos. Fumava cigarro, cachimbo e charuto; palha e papel; caporal, turco e goiano; desfiado, picado e lavado... Durante anos fiz projetos e mais projetos, planos sobre planos, de abandonar o fumo. Não que eu receasse perder a memória; absolutamente. Tenho visto fumantes que são capazes de lembrar-se dos 5$ que você lhe tomou emprestados no carnaval atrasado. O meu receio era dos seguintes males: “câncer”, “angina pectoris”, dispepsia, placas dos fumantes e outros. Por mais que desejasse fugir ao cigarro, não havia meio. Fazia um projeto sólido de manhã e fraturava-o antes do almoço. Ao meio-dia, formava resolução firme, atirava à rua os petrechos e deixava definitivamente de fumar – para pedir um cigarro a um amigo daí a meia hora. Recorri aos juramentos solenes, pela salvação da minha alma, pelas cinzas dos antepassados; mas caía em perjúrio à vista do primeiro charuto.
Um dia, finalmente, uma ideia genial me atravessou o espírito. Não foi conseqüência de meditação nem estudo, como as descobertas de Galileu e Newton, mas uma verdadeira inspiração divina. Encontrei ao cabo de tanto esforço, o meio de me libertar do fumo. Em vez de novos projetos e inúteis juramentos, não tomei resolução nenhuma – Deixei simplesmente de fumar. A minha descoberta consiste exatamente nisto: para livrar-se do fumo, o que se deve é “deixar de fumar” e não formar propósitos e juramentos.
Experimentem os fumantes.


Gazeta de Notícias, 14 de maio de 1911.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

João Sem Telha

Pseudônimo de Wladimir Bernardes.

RESTOS DE VALENTIA

A guerra que o Brasil, há 60 anos passados, se viu obrigado a manter com o Paraguai, pelo largo espaço de um lustro, deu ocasião a que o soldado brasileiro conseguisse assombrar o mundo com a demonstração admirável da sua resistência orgânica, aliada a uma incomparável temeridade.
A história da nossa Pátria, nesse duro período, está ornada de passagens heróicas onde os louros das vitórias foram colhidos pelos nossos mais célebres cabos de guerra, manu propria, no terreno regado de sangue pela chuva da metralhadora.
Os nomes de Caxias, Jaceguay, Barroso, Osório e tantos outros, são títulos de glórias que a esponja do tempo jamais poderá apagar do quadro de honra do Brasil; pena é, porém, que a garra adunca da Morte já tenha arrastado ao silêncio do túmulo a quase totalidade desses valorosos veteranos que tanto souberam zelar pela integridade dos nossos direitos.
Eu, felizmente, ainda conto com a amizade terrena do venerando general Carneiro de Sá, um dos únicos sobreviventes da grande guerra e que fez toda a campanha, como tenente do Estado-Maior, adido à Corte desta heróica cidade de S. Sebastião.
O general Sá, que orça pelos seus nevados 80 anos, ainda possui a antiga firmeza de caráter e o seu porte marcial infunde aos paisanos um sincero sentimento de admiração e respeito, quando ele conta as suas façanhas, se bem que o general Pires Ferreira afiance que a espada do seu colega é, até hoje, mais virgem que o vinho do Rio Grande.
Eu, porém, não acredito em semelhantes intrigas e mentiralhas e ontem pude julgar mais uma vez da coragem indomável do velho general Carneiro.
Estávamos, ele e eu, na Avenida Rio Branco, esquina da Assembléia, conversando em animada palestra sobre a nova organização do Exército, defendendo eu a missão francesa que o general atacava, quando uma forte detonação se fez ouvir para os lados da rua S. José.
O general Carneiro, sustendo a relação de suas proezas que, dizia ele, não tinham sido aprendidas com o estrangeiro, empalideceu repentinamente e perguntou-me assustado:
– Isso foi tiro, João?
– Qual, general; apenas qualquer estouro de pneumático, tornei tranqüilizador.
– Ah! porque se fosse tiro eu ia sentir de perto o cheiro da pólvora, retruca o velho militar, com o peito inflado de ardor belicoso, continuando a recapitulação dos seus atos de heroísmo.
Passavam, porém, uns dez minutos que a detonação fora ouvida, quando de nós ambos se acercou o dr. Jaime de Vasconcelos, algum tanto nervoso.
– Viram a tentativa de assassínio ali na esquina da rua S. José? Um desordeiro detonou o revólver contra um soldado do Exército, mas a bala perdeu-se...
– A detonação de há pouco foi tiro mesmo? perguntei eu curioso.
– Foi, sustentou o dr. Jaime.
– E a bala perdeu-se? inquire o bravo militar.
– Perdeu-se...
– Pois então corram, “seus paisanos”, porque bala não traz letreiro, diz-nos o valente general, desabalando sozinho pela Avenida afora, rumo da Sete de Setembro com toda a celeridade que as suas pernas trôpegas lhe permitiam...
E o dr. Jaime e eu, afrontando o perigo, nos dirigimos sorridentes para o local do crime.


O Jornal, 23 de abril de 1920.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

R. Manso

Alguns cálculos

O anatocismo não é, como algumas pessoas pensam, a membrana que reveste os ossos. Isso é cousa diferente e chama-se diafragma. Anatocismo é o ajuste prévio do pagamento de “juros de juros” e como tal proibido pela nossa legislação. Tal proibição é quase platônica, porque de seis em seis meses ou anualmente o devedor pode ser levado a regularizar sua conta capitalizando os juros vencidos.
Há porém um cavalheiro, ex-deputado por um dos Estados do Brasil (não pode haver indicação mais vaga), que descobriu um meio de sofismar a lei e até a moral. Esse cidadão empresta 95$ ao meio-dia para receber 100$ à hora do jantar, com a condição, não estipulada mas subentendida, de que o jantar será pago pelo mutuário. Sai o juro a 1 por cento, à hora. Podia ser de uma libra de carne; e era pior. O interessante é que se o devedor não paga o termo, o prestamista não faz dúvida nem escândalo. Capitaliza o juro com o capital e taxa 5 por cento ao dia. Assim, diariamente. Conheço um rapaz, leviano, que levantou nesse ex-deputado um empréstimo de 200$, e está muito tranqüilo; porque, diz ele, daqui a um ano, será o homem que deverá maior quantia na América do Sul. Somando-se as fortunas dos Srs. Gaffrée, Guinle, Leal não chegarão para saldar-lhe o débito. E ele tem esperança de vir a ser equiparado ao Paraguai, com as mesmas regalias, quando o Sr. Teixeira Mendes conseguir do Congresso a anistia da dívida desse país.
Desse ex-deputado conta-se que, residindo em uma chácara do Rio Comprido, durante as sessões, e não querendo pagar leite comprou, de sociedade com um colega, seu vizinho, uma vaca. Cada qual entrou com 150$. – Eu estou figurando que a hipótese da vaca ter custado trezentos mil réis. Se ela custou duzentos, evidentemente foi de cem mil réis a parte de cada um. Esta observação pode parecer desnecessária ao leitor arguto, mas gosto de ser claro – Comprou a vaca e mediu-a. Tinha ela dous metros e trinta centímetros, sem contar a cauda. Ele escolheu para si a metade posterior. No fim do mês, o vizinho, que não consumiu leite, foi procurar o sócio:
– Vim para ajustar as contas da nossa vaca.
– Ora... não precisava pressa.
– Como foi de experiência o primeiro mês?
– Muito bem. Em primeiro lugar, como nunca é conveniente a propriedade indivisa, medi a vaca: dous metros e trinta, e demarquei para mim um metro e quinze ma parte de trás. Passei um traço de tinta e você pode verificar. Durante o mês a minha parte produziu cento e vinte litros de leite que renderam 60$ e a sua não produziu cousa nenhuma. Ao contrário, consumiu trinta mil réis de alfafa que debitei na sua conta...
Com esse sujeito um dia me encontrei, em um carro da Central, de viagem para o interior. Eu estava fumando e ele dirigiu-se a mim:
– O senhor fuma muito?
Supondo que ele me quisesse disparar um sermão econômico ou higiênico, respondi:
– Fumo quatro charutos por dia, que a três tostões são mil e duzentos. Sei disso muito bem. Fica-me o vício em 36$ por mês e se eu o deixasse, economizaria 432$ por ano. Não ignoro. Sei bem que o fumo prejudica ao estômago, à memória e ao coração. De modo que, se o senhor deseja me catequizar, é inútil. É melhor guardar os seus argumentos para algum discurso na Câmara. Ou, então, vá converter sua avó.
Sem se alterar ele sacou um embrulho e disse-me:
– O senhor está enganado. Eu sou até apologista do fumo; e conhecedor. O senhor vai me comprar este cento de charutos por 10$ e depois me dirá se não valem o dobro...
Se isto não for autêntico, o diabo que me apareça.


Gazeta de Notícias, 23 de maio de 1911.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

R. Manso - "Papagaios"

Eis o que me dizia o Abreu.
Há poucos dias um papagaio causou tal desaguisado no seio de certa família suburbana, que o caso foi acabar na polícia. Entre os leitores de tal notícia muitos provavelmente não acreditaram que tivesse, realmente, sido a ave o pomo da discórdia. Outros, habituados à linguagem literária e simbólica dos noticiários modernos, julgaram que o repórter empregara a palavra papagaio em vez de seu sinônimo – deputado. Mas não foi. Tratava-se de um desses parladores comuns que custam 20$000 de uma só vez e não dos outros que pagamos por prestações de 75$000, como nos clubes, e que nunca acabamos de pagar.
Eu sei, de ciência própria, que os papagaios, direta ou indiretamente, causam às vezes transtornos sérios. Um amigo meu, freqüentador de uma família eriçada de moças casadoiras, perguntado um dia se não tencionava tomar estado, respondeu que andara pensando nisso, as resolvera afinal comprar um papagaio, por ficar mais barato.
O enterro se realizou no dia seguinte.
O caso que se deu comigo, há dous anos, andou desvirtuado nos jornais. Aproveito o ensejo para retificá-lo. Foi o seguinte. O quitandeiro, ao vender-me o papagaio, garantiu que ele “repetia tudo quanto ouvia”. Nessas condições, por 50$000 era barato e paguei sem regatear. Tive de modificar o regime de casa e proibi que se lesse em voz alta o Diário do Congresso, com receio de que o louro aprendesse certos trechos. Abstive-me, com sacrifício, de praguejar durante uma semana. Ao fim desse tempo notei que o animal não dizia uma frase, uma palavra; nem ao menos “apoiado” ele sabia repetir. Levei-o ao vendedor:
– O senhor não me garantiu que este papagaio repete tudo quanto ouve?
– Garanti e garanto.
– Como é que em oito dias ele não falou ainda uma só palavra?
– Porque não ouviu nenhuma...
– Pois se eu lhe afirmo que tenha passado horas e horas a ensinar-lhe, a ler-lhe em voz alta, a falar-lhe, a cantar-lhe...
– Acredito perfeitamente; mas o papagaio não ouviu.
– O senhor tem coragem de me dizer isso?...
– Sim senhor; porque ele é surdo...
O delegado achou excessivo que eu respondesse com a bengala de brejaúba. Na sua opinião era suficiente um bastão de cerejeira. E mandou lavrar o flagrante.
Felizmente o juiz decidiu a meu favor, frisando que “ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei” e, não havendo texto legal que me obrigasse taxativamente a fender a cabeça do quitandeiro com a bengala de cereja ou de outra qualquer madeira em particular, eu não era passível de pena.
Os papagaios (uns e outros) causam transtornos sérios.


Gazeta de Notícias, 20 de maio de 1911.