domingo, 16 de novembro de 2014

Alfredo Riancho

Alfredo Riancho (1840-1904) era pseudônimo do português Alfredo Augusto da Costa Camarate. Nasceu em Lisboa e viajou um bocado antes de chegar ao Brasil aos 32 anos de idade. Trabalhou como inspetor no Conservatório Imperial de Música e foi durante anos crítico musical no Jornal do Comércio. Naturalizou-se brasileiro em 1887.

Em 5 de janeiro de 1893 Alfredo Riancho iniciou na
Gazeta de Notícias uma série de nove artigos intitulados “Costumes”. O texto a seguir é o terceiro da série.

Costumes

Visitas

No Rio de Janeiro fazem-se desde às 6 horas da manhã até às 12 da noite.
Pelo que toca à duração das visitas é difícil estabelecer uma média de tempo aproximada: regulam entre 10 minutos e cinco meses!
Eu já tive uma visita que se demorou e minha casa sete meses; mas a gente não deve argumentar com as exceções.
É raro recebermos visitas compostas de uma só pessoa, a não ser as do credor. Em geram vêm, na primeira fornada, mulher, filhas e mucamas; na segunda fornada, às horas do jantar, vêm então o marido e os filhos.
Já se têm dado casos em que o marido apresenta um amigo.
Visitas a seco são raríssimas; pelo menos o jantar apanham elas com certeza.
Visitas de etiqueta, de cerimônia, de emboras ou pêsames, não se conhecem no Rio de Janeiro, com a rapidez que caracteriza essas visitas dos esculápios. Nesta terra não há visitas de médico; porque mesmo estes, depois de verem a língua do doente, de o revirar de todos os lados, de lhes percurtir na barriga, com a fúria de um rufo de timbales, no coro dos punhais; depois de receitarem, dão o seu pedacinho de cavaco com a família e tomam o sacramental café.
Do cozimento do nosso precioso grão é que ninguém escapa.
Com as alegrias de um filho recém-nascido; com as mágoas de um defunto estendido na câmara ardente; ou com um membro da família gravemente doente no leito; no princípio, no meio e no fim da visita – zás, café te valha!
Diz a história, nas flexíveis verdades com que a escrevem, que em 1837 houve um sujeito que, visitando uma família de tratamento, fora tratado absolutamente a seco, sem café sem nada!
Indagações posteriores e feitas pelos severos e independentes cronistas modernos, provaram, porém, que o tal sujeito era um embusteiro, um ingrato e que não só bebera três xícaras de café, como cinco cálices de parati e um copo de guarapa.
Veio ensopado e ainda a gritar que tinha sede! Vá beber para o diabo!
Mas as visitas mais importantes, aquelas que mereceriam um volume do tamanho do cireneu Larousse, são as visitas que nos caem da roça.
Essas trazem-nos: marido, mulher, sogra, filhos, sobrinhos, mucamas, pajem, oito a dez sacos de noite e três ou quatro malas de barriga cheia, que parecem estar para cada hora!
Mas o dono e a dona da casa recebem-nas com sincera alegria, com imperturbável serenidade de ânimo, sem que, sequer por minutos, pensem no rombo econômico que lhes vai causar a invasão daquela tribo.
[ilegível] recém chegado do estrangeiro, a quem mostremos minuciosamente a nossa casa, nunca acreditaria que, duas horas depois, estamos absolutamente prevenidos de tudo para receber aquele regimento que nos chega esfaimado pelo exercício de muitas léguas a cavalo e em trem de ferro.
Pois estamos.
Há uma cama de casados, duas de solteiro para as filhas, outra para o filho e duas barras de ferro para as criadas. Pois à noite, a gente vê, além das peças já enumeradas, dous colchões na sala, um no corredor, outro em cima da mesa de jantar e três enxergas na copa para as ordenanças, e tudo com lençóis de linho muito lavadinhos, com almofadas fofinhas, com colchas todas cheias de historiados, com castiçais com a competente caixa de fósforos, com, com...
Como diabo é que a gente há de dizer isto?
Com os etc. e tal muito brancos, muito limpos.
O estrangeiro, que ficara conhecendo a nossa casa por miúdos, à vista daquela luzente e numerosa corporação, devia com certeza exclamar:
– Onde é que esta gente guardava toda esta baixela?!
Pela manhã, a dona de casa não se limita a mandar deitar mais água no saco de café; pelo contrário, deita-lhe mais três colheres de pó, para que fique forte; enche o açucareiro até a boca; manda vir uma lata de biscoitos estrangeiros, porque os roceiros como não produzam desta fazenda, acham maus todos os que fabricamos na capital federal.
O dono da casa levanta-se com os olhos empapuçados pelo sono, porque o patife dormiu.
Sim, porque é necessário que as demais nações do mundo fiquem sabendo que, no Brasil, um dono de casa dorme, mesmo quando lhe desaba em casa uma coorte de roceiros, com criados, malas e tudo!
Basta isto para causar pasmo e admiração a todos que nos recebem na Europa, levando a hospitalidade até o ponto de nos indicar... qual é o melhor hotel em que nos convém hospedar!
Ao jantar, aumenta-se consideravelmente o número de pratos, a feijoada inevitável assume as proporções de uma caldeirada de asilo ou de regimento; a farinheira chora a farinha pelas beiradas e o assado adquire as gigantescas proporções de um monólito de Tebas.
À noite, com sorvetes e tabocas; depois do teatro, ceia; depois da ceia, cama e, noutro dia e nos outros dias e nos outros meses, sempre a mesma cousa: os mesmos fartões, os mesmos rega-bofes, o mesmo aconchego, a mesma cara satisfeita do pai, da mãe, que nem sequer se lembraram, por minutos, que a despesa da casa aumentou na razão de trezentos ou quatrocentos mil réis por mês; dos filhos que andam nos passeios, teatros e restaurantes, devido unicamente à presença dos hóspedes; dos criados, que encontram auxiliares para o serviço, no contingente que lhes chegou da roça; de todos.
É o caso de dizer: comidos, derreados, mas contentes.
É verdade que, em compensação, na roça, a casa do fazendeiro está sempre aberta para parentes, amigos, conhecidos, bufarinheiros, mascates, viajantes, tropeiros, etc.; mas qual é o habitante da capital que vai saldar as suas contas da hospedagem que deu, metendo-se numa fazenda onde, no fim de quatro dias, está farto de prazeres bucólicos, de orelha de porco, de galinha, de farinha e de outras cousas deste gênero que o fazendeiro pode apenas fornecer-lhe?
Só pelo sol que a gente apanha e que nos pela a cabeça, só pela viagem, num burro chouteador, que nos pela o a..., as calças, eu acho que o pagamento do nosso crédito deve ser lançado na conta de Lucros e perdas!
Em França, uma filha casada vai jantar à casa do seu pai só quando ele a convida; em Lisboa, se fazemos visitas às horas de jantar, rendem-se a mãe e as filhas para entreter, na sala, as visitas; em Buenos Aires, faz-se quase a mesma cousa; em toda a parte do mundo, a casa e a mesa é de quem a tem; só no Brasil é que a nossa casa e a nossa mesa é de todos.
É por isso que, nesta florescente República, metade da população vive à custa da outra metade.
É esplêndida, é admirável, é excepcional esta hospitalidade; mas há de acabar, dentro em muito pouco tempo, quando as necessidades da vida nos ensinarem que: cada um trata de si e Deus de todos!

Gazeta de Notícias, 11 de janeiro de 1893.