terça-feira, 26 de abril de 2016

R. Manso

Bom tom


Os manuais de bom-tom têm o defeito de ser muito resumidos e às vezes incompletos. Minha professora primária (Deus lhe reserve a melhor harpa do paraíso) dizia sempre que a primeira regra de bom-tom é a que proíbe introduzir-se, em público, o dedo no nariz. Durante muitos anos supus que fosse esse o princípio fundamental da boa educação. Hoje, porém, tenho alguma dúvida a esse respeito. Tenho percorrido manuais do bom-tom franceses, ingleses, italianos, espanhóis, inclusive as máximas do bom homem Ricardo, e nenhum deles se ocupa do nariz. Nem a menos referência.
Outra regra deficiente dos ditos manuais é a que manda, secamente, “dar precedência às senhoras nos veículos e lugares públicos”. Só tenho visto aplicada quando concorrem duas circunstâncias: a) de haver terceiras pessoas observando; b) da senhora em questão ser elegante e bem trajada.
Todavia a observância dessa regra não é tão rigorosa como se supõe. Uma professora, minha conhecida, afirma mesmo, categoricamente, que não há no Rio um só cavalheiro que a não infrinja. E ela fala com autoridade; porque nunca vi senhora mais meticulosa e educada. Terá talvez trinta anos no máximo, mas tal é a sua circunspecção que todos lhe dão cinqüenta. Alimenta-se apenas de bicarbonato de sódio, semanas e semanas seguidas, salvo nos domingos, em que se permite o luxo de um pouco de óleo de rícino. Quanto a bebidas é “tecto taler”, abstêmia completa, e se bebe um pouco de água de Janos, é por conselho do médico. Pois essa senhora distintíssima como é, me assegurou que nunca viu no Rio um cavalheiro lhe ceder o lugar no bonde, nem se afastar num trottoir estreito para ela passar, nem lhe emprestar o guarda-chuva, nem lhe apanhar o leque, nem a bolinar, nem nada...
Da sua experiência pessoa ela, por um método anticientífico, generaliza e conclui que os homens no Rio são indiferentes às senhoras.
Eu, pelo menos, não o sou.
Ainda ontem dei disso prova na Estação Central. Aproximava-me do guichê para comprar uma passagem, quando senti uma espetada ao lado. Era o cotovelo de uma senhora que abria o caminho para a bilheteria, acompanhada de outra, cujo rosto não me elucidou se era a sua avó ou neta. Talvez fosse irmã; o que é certo é que se chamava D. Estácia. Cedi-lhes a frente, como era meu dever, e fiquei ao lado à espera, embora com receio de perder o trem.
D. Estácia dirigiu-se à companheira:
– Lota, não compre ida e volta, porque talvez tenhamos de dormir lá.
– E se eles não estiverem em casa, havemos de ficar assim mesmo?
– Não. É melhor comprar ida e volta.
E introduzindo uma nota de 5$ no guichê pediu:
– Duas, de ida e vol...
Mas não pode terminar, porque a outra lhe puxou o braço, reclamando:
– Não senhora! não consinto! Era só o que faltava... Pois eu convido e você quer pagar? Não; deixe... Eu tenho aqui trocado.
– Mas eu preciso trocar essa nota. Tenho muita despesa que fazer e me falta dinheiro miúdo...
O trem apitou. Consultei o relógio impaciente. Já uma multidão se atropelava atrás de nós, murmurando. D. Estácia continuou:
– Não consinto. Tenha paciência!...
E vasculhando a bolsa:
– Gente!... Ora esta!... Quer ver que esqueci o dinheiro em casa? Mas não é possível... Eu me lembro de ter posto aqui duas pratas de mil réis e uma nota de 5$000.
O bilheteiro atalhou:
– Vamos. Façam o obséquio de despachar-se. Tenho que atender aos outros.
D. Estácia aproveitou a saída para o “impasse” em que se metera, oferecendo-se a pagar as passagens, sem dinheiro, e explodiu:
– Se eu tivesse um homem aqui, o senhor não me diria esse desaforo! Malcriado!... E não há aqui um homem, um ao menos, que tome a defesa de uma mulher desrespeitada?!...
Estas últimas palavras foram dirigidas, entre lágrimas, à minha direção. Como não gosto de ver ninguém chorar, afastei-me.


Um amigo, a quem propus iniciarmos uma campanha para a reforma do código do Bom-Tom, respondeu-me:
– Não me fale isso. O código do Bom-Tom é como a Constituição – intangível. Ambos devem continuar intactos. A questão é saber desrespeitá-los no momento oportuno.


Gazeta de Notícias, 16 de outubro de 1911.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

R. Manso

Um homem de coragem


Passava eu ontem, despreocupadamente, por uma rua da Lapa. Na volta de uma esquina topei com um sujeito grisalho, de óculos na testa e sem chapéu, a capturar transeuntes no meio da rua. A princípio supus que fosse um agente do Alexandre Braga, talvez o próprio Carnum do propagandista serôdio, empenhado em organizar auditório para a “matinée” do Palace Theatre. Nessa suposição planejava eu a defesa e ia já transferir o revólver do bolso da calça para o do casaco, quando tal sujeito me deitou a mão ao ombro:
– Está seguro!
– Mas como? por que? A Constituição, no art. 72, § 13, garante...
– Conversaremos depois, cavalheiro; agora é inútil. Queira entrar.
E me impeliu para uma sala tristonha, onde passeava um homem agitado, nervoso, entre quatro sujeitos soturnos, de cabeça baixa. Reinava um ambiente de má notícia. O grisalho tomou a palavra:
– Meus senhores, queiram desculpar-me se lhes causo algum transtorno. Mas trata-se de um caso urgente. Aqui o Sr. José Gomes Fortunato, conhecido pelo próprio, de mim tabelião, estando para praticar uma temeridade...
– Por dever profissional, atalhou o protagonista.
– Seja por dever ou não, é uma temeridade. Ninguém pode contestá-lo... Quer por isso fazer o seu testamento. E como faltavam testemunhas varões, maiores de 14 anos, tomei a liberdade de aprisioná-los. Dada esta explicação, vamos à obra.
Pela porta semicerrada entravam soluços e lamentações de senhoras, que choravam no aposento contíguo.
José Gomes, com perfeita coragem, apenas um temor imperceptível na voz, ditou do começo ao fim o seu testamento. Declarava que, se viesse a morrer, não culpassem de sua morte a ninguém. Pedia que não lhe atribuíssem intenção de suicídio, embora o ato que ia praticar pudesse deixar transparecer esse propósito. Que o impelia somente o dever profissional e nenhum outro motivo. Que, falecendo ele testador, como era muito provável, desejava que o sepultassem “in situ”, para não dar incômodo maior à família. Finalmente pedia que sobre a sua sepultura colocasse uma lousa singela, com esta simples inscrição – “Mártir do dever”.
Ao ditar estas últimas palavras, irromperam na sala três ou quatro senhoras desgrenhadas e uma dúzia de meninos e meninas, debulhados em lágrimas, que abraçaram o testador, se agarraram às suas pernas, exclamando ao mesmo tempo:
– Meu marido, tenha pena destas crianças!
– Papai, não vá morrer! Não vá papai!
– Meu genro, isto é um crime! Quem há de amparar estes orfãozinhos?
– Ah! Meu Deus!
– Que há de ser de nós...
Com o coração dilacerado, mal contendo uma lágrima inoportuna, que estava por um triz a pingar, dirigi-me à mesa para deixar a minha assinatura no testamento. Eu estava imaginando que o testador ia se prestar à inoculação do “bacillus virgula”, que produz o “cholera morbus” ou do bacilo de Nicolaier, que causa o tétano, para alguma experiência científica; mas entre as lamentações, ouvi a palavra aeroplano. Perguntei ao tabelião se o testador ia voar:
– Vai, respondeu ele. Vai em aeroplano do pico do Corcovado a Juiz de Fora, sem parar no caminho, mantendo-se sempre à altura de mil metros.
Isto disse o tabelião, alto. Depois, baixando a voz, falou-me ao ouvido:
– Essa história de aeroplano é forjada para não assustar demais a família. Na verdade o perigo é muito mais grave.
– Maior ainda?
– Sim senhor. Ele vai mesmo a Juiz de Fora, mas no expresso da Central.
Lancei um olhar de compaixão sobre aqueles dez órfãos prévios e saí.
Há muita gente temerária neste mundo...


Gazeta de Notícias, 10 de outubro de 1911.

domingo, 3 de abril de 2016

Urbano Duarte

Um primo que tenho, empregado público em certo estado, escreveu-me participando que viria brevemente passar uma semana em minha casa. Ao ler esta ameaça senti um frio nos intestinos, porque sempre tive horror pelos parentes que fazem visita de uma semana em tempo de carne fresca a 700 réis. Respondi-lhe dizendo que a casa estava às ordens, que teria muito prazer em hospedá-lo, mas que talvez fosse prudente adiar a viagem, porque a maldita febre amarela, em pleno mês de agosto, estava grassando no meu quarteirão. Mas este plano de defesa não serviu, porquanto o diabo do primo mandou-me dizer que é refratário ao micróbio xantogênico e até já residiu por muito tempo junto de um hospital amarelo.
Vendo os meus bifes em xeque-mate, cocei a cabeça, cofiei os bigodes, apertei os beiços, franzi os sobrolhos e retorqui ponderando-lhe que sentiria o maior prazer, etc., etc., mas que ele já estava desaclimatado, que a febre amarela andava maluca, não distinguia mais os nacionais dos estrangeiros, e que ultimamente tinha tomado um caráter pernicioso fulminante, de fogo viste linguiça, ai, ai, Caju! Citei-lhe até o caso do primo de um amigo, que tendo desembarcado na estação central sem febre alguma, ao chegar ao mangue ardia em 40 graus, em frente da Quinta vomitava preto, no campo de S. Cristóvão fazia testamento, e na praia do Caju entrava com o seu próprio pé para o cemitério.
Nada!
O terrível primo replicou-me em ar de troça que não tinha medo e o esperasse no domingo sem falta.
Como último cartucho de defesa da praça sitiada, escrevi-lhe repetindo que seria recebido de braços abertos, etc., etc., mas que não contasse ser tratado como merecia, porque os víveres estavam caríssimos, a carne seca subira à altura de peru, e o peru à altura de um sonho.
Como resposta tive este telegrama conciso: Sigo hoje.
E estou com o primo em casa.
Mas que apetite! Corta o coração ver como ele corta a carne de sete tostões! Vou escrever-lhe cartas anônimas, aconselhando-lhe que não seja filante.
Em último recurso, tempero a sopa com poaia.


O Paiz, 15 de agosto de 1891.