quinta-feira, 1 de agosto de 2019

João Foca

Fui ontem dar os pêsames ao meu prezado amigo Gomensoro, a quem um tio fez a desfeita de morrer, deixando-lhe uma bagalhoça de encher o olho: nada menos de 150:000$ e dois prédios.
O Gomensoro é um rapaz de muito espírito, estourado a meu gosto e que há de meter o pau nessa cobreira com uma graça infinita, até ficar apitando que nem maduro.
Fui encontrá-lo aferrolhado em casa, trancado a sete chaves, visível apenas para os muito íntimos:
– Que é isso, filho, o dinheiro pôs-te inatingível?… Tudo isso é medo dos mordedores? Não sais, não desentocas desde que és homem rico… Estarás avarento?...
– Não é isso, embora houvesse razão para o fazer que, no Rio hoje em dia, meu camarada, a dificuldade não é cavar a vida, mas defender o arame que se tenha no bolso do avança que fatalmente lhe hão de dar...
– Tens razão...
– Não saio, porém, por outro motivo… Tenho medo de encontros...
– De encontros?
– Sim, de conhecidos que me venham fazer perguntas… Calcula tu: eu estou de luto e com um braço na tipoia, por causa de uma queda que dei no banheiro… Vê lá: de luto e de tipoia!… Matavam-me com perguntas sobre o motivo do luto e ensinamentos de remédios para as prováveis moléstias do braço...
Realmente assim é; o nosso povinho é capaz de andar léguas para bisbilhotar sobre os motivos de estar um camarada todo de negro ou para lhe ensinar mezinhas.
É dos livros, é dos regulamentos: quem avista um simples conhecido de fumo no chapéu, atravessa a rua e vai logo:
– Está de luto?
– Estou...
– Por quem?
– Um parente...
– Não sabia… Meus sentimentos… Parente próximo?… Morreu aqui?… De que morreu? Que idade tinha?… Deixou família?… Estava bem, não estava?...
Se o parente é muito próximo surgem as consolações:
– É o caminho de todos nós...
Se é criança:
– Antes assim, do que andar rolando, sofrendo neste mundo...
Se é velho:
– Ora, já tinha gozado muito, não é?… Se havia de ficar caduco, dando trabalhos...
Se é moça solteira:
– Pare ter talvez de cair nas mãos de um marido que a maltratasse, como a filha do dr. Azevedo, antes no céu...
Mas como isso se repete dez, vinte, cem vezes, sempre que se encontra um conhecido, segue-se que é do enlutado dar bofetadas nos perguntadores, ou um tiro em si mesmo.
Com as doenças é outra scie. Toda a gente entende que há de ensinar remédios:
– Reumatismos?… Opodeldeck é santo remédio… Agora eu tenho uma tia que se dá bem com fricções de um remédio para cavalos de corridas: Embrocação… Nos vidros o nome está em inglês embrocation…
Também sei de uma pessoa para quem banha de anta é tiro e queda… Nunca experimentou dar no lugar um suadouro de vapor de água fervendo?… Pois é bom, alivia. Pega-se em uma chaleira, bota-se água e deixa-se abrir bem a fervura, quando está na conta tira-se a tampa e deixa-se a perna ou pedaço do corpo que é apanhar aquele vapor, não sabe?… Depois embrulha-se bem em umas flanelas, abafa-se com o cobertor… Não vê que o calor faz sair os humores...
E se a gente não dispara, o almanaque de medicina fala horas e horas. As senhoras de idade, então, são formadas em receituários. Duas delas, começando a conversar em doenças ensinando remédios, contando curas maravilhosas, lembrando o que se deu com a filha do compadre Fulano que estava desenganado por três médicos e com a irmã de uma cunhada de meu concunhado, marido de minha irmã mais velha, que teve com os drs. Beltrano e Sicrano, passou-se para a homeopatia, andou até com um mão santa e nada para afinal ficar boa num pronto com uma coisa à toa, cozimento de raiz de não sei o que, tirada no minguante e tomado em jejum – duas delas ferrando um cavaco neste sentido, dão tempo de um cristão de passo curto ir a pé à Copacabana e voltar, que ainda as há de achar no bate-boca.
Está na massa do sangue, é mania do país, doença da terra… Eu mesmo, que reparo nestas coisas, quantas vezes me tenho apanhado a ensinar que, para solitária, não há como água de coco em jejum e pevide de abóbora, de infusão, e para febre intermitente chá de casca de lima umbigo, quanto mais verde melhor, por causa do sumo?...
Achei, pois, que o Gomensoro teve grande juízo em se trancafiar em casa.
Nos casos dele, eu, a ter de sair, havia de ser acompanhado de um fonografozinho, com tubos preparados, contando a morte do tio e a queda no banheiro…
Sebo, que cansa ter de repetir essa coisa e, principalmente, que se está sentidíssimo, aflitíssimo com a morte de um tio que deixa 150:000$ e dois prédios…

Jornal do Brasil, 17 de janeiro de 1905.