quarta-feira, 30 de setembro de 2015

J. Brito

Magnífico

Essa deliciosa peça que o Exmo. Sr. Marquês de Cavalcanti acaba de pregar a alguns papalvos indígenas, merece bem um prêmio. O marquês merece ser promovido a duque.
Qualquer gajo bem falante que aí chega, vindo da Europa e da Civilização, enfeita-se logo com um título de conde, de marquês (até príncipes e princesas já temos tido, mais ou menos russas) e começa logo a embrulhar elegantemente o indígena que cai como um patinho. E é muitíssimo bem feito.
Esse Marquês de Cavalcanti (eu só escrevo Marquês com M grande, que é pra dar importância ao gajo e ao capítulo) usou de um “truc” curioso e galante, para enganar os tolos. Tinha ele para seu uso particular uma ‘mademoiselle’ com escritório de cartomancia à Avenida Central. Por meios indiretos, conseguia encaminhar para a graciosa cartomante os papalvos dinheirudos a que queria enganar. Antes, tinha o Sr. Marquês o especialíssimo cuidado de informar (particularmente) à Mademoiselle do passado, presente e futuro dos ditos camaradas – de modo que quando qualquer um deles, por mero acaso, chegava a ir consultar a elegante cartomante, ela lhe dizia cousas tão íntimas da sua vida passada, da sua vida presente, que o camarada tinha de acreditar por força no que ela ainda lhe dizia de sua vida futura.
E como anteriormente o finório do Marquês já tinha entabulado com esses dinheirudos amigos os seus “vantajosíssimos negócios”, Mademoiselle aludia vagamente, com o ar mais cândido deste mundo, sem uma previsão categórica e concisa (para não fazer desconfiar) que “eles de futuro iriam ser muito felizes, em um negócio que estavam fazendo com um titular muito rico...”
Percebe-se, heim?... Diabólico, heim?... Quem é que escapa de uma destas?... Se a mulherzinha havia adivinhado todo o passado, todo o presente – como duvidar de que ela não acertava também, adivinhando o futuro?...
Todos caíam... As notas de polícia dizem que o Marquês levava indiretamente para a Avenida as suas futuras vítimas, que ignoravam as suas relações com a cartomante...
Também, tinha graça que ele fosse confessar o “truc”...
É claro, meus amigos, que esse Marquês merece ser promovido a Duque.

Gazeta de Notícias, 22 de abril de 1917.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

R. Manso

A temperatura de Londres

O mercúrio agora em Paris, se não é invenção do telégrafo, anda pela altitude de 38°. Tive muita satisfação ao ler essa notícia, porque não sou egoísta e não desejo monopolizar as boas temperaturas para o meu país. Eleve-se o termômetro onde quiser em 10° ou 15° que não serei em quem lhe dê para baixo. Sou absolutamente destituído de inveja. Contanto que não venham mexer com os quarenta graus que gozamos à sombra neste delicioso bairro de Copacabana.
Em Londres, também o mercúrio se mantém em boa situação, conforme deduzo de um telegrama de ontem. Diz o despacho que o termômetro Fahrenheit está ali marcando 96,7° à sombra e que é essa “a mais alta temperatura que já foi ali registrada”. Noventa e seis graus e sete décimos Fahrenheit não dão idéia muito clara da emergência e para compreende-la tratei de reduzi-las à gradação centígrada. O resultado foi o seguinte.
Raciocinando que a escala Fahrenheit marca 212° para a água ferver e 32° para a fusão do gelo, tirei a conclusão de que os 100° centígrados correspondem a 189° Fahrenheit. Fiz a conversão de um caso simples de regra de três e obtive para a temperatura atual de Londres 63° centígrados, isto é: o calor do Acre e mais 25° de bonificação. Pareceu-me excessivo.
Para verificar a exatidão do cálculo, recorri ao Larousse, apliquei a fórmula que ele ensina e o resultado foi, felizmente: 6,5°. Isso me tranqüilizou um pouco mas, pensando melhor, considerei que 6,5° é uma temperatura que, para pessoas pouco experientes, pode passar perfeitamente por inverno. Em todo o caso, não produziria queixas e seria exagero chamar-lhe “a temperatura mais alta” que já se sentiu em Londres.
Fui ao Tratado de Física de Ganot, 22ª edição, completamente refundida, estudei o caso com atenção e apliquei a fórmula inculcada pelo autor. Resultado: 36 graus centígrados abaixo de zero.
É próprio dos sábios ter pouca confiança em si mesmo. Desconfiado dos meus cálculos, repeti-os, segundo fórmulas e explicações de Eisenmenger, Lenoir, Almanaque Hachette, Enciclopédia Britânica e Paul de Kock. Cada um desses autores deu resultado diferente. Afinal, por uma inspiração súbita cheguei, segundo me parece, à solução do problema. Eu possuo um termômetro Fahrenheit e outro centígrado (e aí reside, provavelmente, a minha vantagem sobre os autores citados). O método usado foi o de justaposição, ou melhor, de comparação. Uni os dois, de modo que o 0° centígrado coincidisse com o 32° Fahrenheit e verifique que a temperatura de 96,7° Fahrenheit corresponde a 72° centígrados. Isto com aproximação de um décimo, porque o meu termômetro Fahrenheit é cumprido, minucioso, de bom calibre, ao passo que o centígrado que serviu para a comparação é pequeno, quase capilar.
A temperatura que estão agora sofrendo os londrinos é, pois, de 72° centígrados, a um décimo de grau para mais ou para menos. É na verdade forte; mas, que hei de fazer?
Como não quero obrigar ninguém a aceitar a minha solução, em prejuízo das de outros autores, dou uma tabela dos resultados obtidos, segundo as formulas e conselhos de cada um deles:
96,7° da escala Fahrenheit correspondem, em graus da escala centígrada, segundo os seguintes autores:

Gazeta de Notícias, 11 de agosto de 1911.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

R. Manso

Empréstimos

“– Embora eu tivesse lido no tratado “De re rustica” de Catão, o sábio conselho de não emprestar nada a ninguém, emprestei a um amigo o meu kodak. Não só a câmara, como “filma”, papel, a lanterna vermelha, as cubas, banhos para revelar e fixar e os chassis. E ainda lucrei uns cinqüenta por cento na transação, porque embora eu seja muito amigo de X e aprecie profundamente mme X e adore o galante Chiquinho X, essa família adorável estava azedando a minha vida. Nos domingos davam-me logo cedo o prazer de uma visita e me honravam com a agradável tarefa de fotografar X sentado, e de pé, e de costas, e de joelhos, e saltando, e fumando, e não fumando, Chiquinho de cartola, e no velocípede, e montado na vassoura, e de camisa, e sem camisa, e puxando o rabo do gato... A princípio eu tirava as fotografias muito minuciosamente, repetindo as chapas que me pareciam imperfeitas. Quando a vizinhança entendeu de vir se retratar na minha câmara, inventei um sistema aperfeiçoado. Vinham os pretendentes.
– Querem se retratar?
– É isso mesmo que lhe vimos pedir.
– Em grupo ou isolados?
– Um de cada vez se puder.
– Posso, muito. Venha o primeiro.
Chegava um, sentava-se em frente ao aparelho, eu focalizava mais ou menos, apertava a pera do obturador: “Tlac”. Pronto! E chamava:
– Venha outro!
– Eu agora?
– Sim. Você mesmo. Tlac! Pronto! Mais outro!...
Assim eu retratava dez, vinte e mais. De uma vez fotografei cento e tantos habitantes de uma avenida próxima, todos por esse rápido processo. Terminada a tarefa, recebidos os agradecimentos, eu guardava o aparelho muito tranqüilamente, porque é claro que eu não havia carregado. Quando vinham buscar as provas eu respondia que se tinham inutilizado, e ficava por isso.
Ontem foi participar da minha sopa o comendador Leitão, e desejou fotografar-se no meu jardim, por gentileza para comigo. Como a minha câmara e mais petrechos estivessem em poder de X, mandei busca-los e tirei duas chapas do meu amigo: uma dele em pé, junto de um canteiro, cheirando uma rosa; outra, encostado à grade do jardim.
O comendador quis ver revelá-las, e entramos para a câmara escura. A primeira chapa deitada ao banho deixou logo ver umas linhas verticais.
– É a grade do jardim, disse ele, vá com cuidado. Tenho palpite que esse retrato está magnífico.
Continuei a revelar a chapa e, depois de alguns instantes, coloquei-a contra a luz. O vulto já estava se formando, mas ainda indeciso.
– Eu estou achando esquisito, disse o comendador. Na chapa parece que saí muito curvado...
Eu também estranhei, mas continuei a revelar.
Daí a pouco examinei de novo a negativa contra a luz. O comendador olhou-a, esfregou as pálpebras, tornou a olhar e com uma invectiva entre os dentes, abriu a porta e retirou-se. eu fiquei extático, estupefato, sem saber donde me saíra aquele urso. O que a princípio parecera grade do jardim eram os varais da jaula!
Pouco depois X mandava buscar as chapas de ursos e macacos que ele andava fotografando no Jardim Zoológico e me remetera por engano. Veja que estúpido engano! Custou-me a preciosa amizade do comendador Leitão.
Por isso cada vez mais me convenço de que devemos seguir os conselhos dos antigos. Catão quando condenou os empréstimos sabia o que fazia. No entanto ele não podia prever que esse costume viesse, no futuro, a produzir tal catástrofe...”
E o Abreu despediu-se desolado.


Gazeta de Notícias, 8 de agosto de 1911.

sábado, 19 de setembro de 2015

J. Brito

Gatunos amáveis

Está publicado que os Srs. Gatunos tomaram a providência de avisar, pelo telefone, os donos das casas que pretendem visitar.
Beneméritos, os Srs. gatunos!... Compreende-se que é um tanto aborrecido ser despertada uma pessoa, alta noite, ao grito de “ladrões em casa!”. É o susto, é o alarma, é o choque que interrompe um sono tranqüilo – e isso de despertar com um susto faz moléstia de coração, segundo a medicina antiga e moderna.
Assim, com o aviso prévio da “visita” logo à noite, os Srs. gatunos prestam um real serviço aos roubados. Dar-se-á que estes preferiam não receber a visita; mas entre ser roubado com um mau despertar, com surpresa, e esperar, calmamente, uma visita amável, se anuncia – francamente a escolha não é difícil: toda a gente prefere esperar a visita, ou com doces e vinhos, um baralho de “pocker”, ou com uma boa pistola, à vontade do freguês. Por isso, se verifica que os Srs. gatunos são gentis e amáveis com essa delicada lembrança do telefone.
Pessoas que falam de cadeira nessa matéria, tanto no capítulo “visitado”, como no capítulo “visitador”, dizem que é sempre uma felicidade a vítima não estar acordada... Se o visitador encontra a sua vítima acordada, ou se ela tem a triste idéia de acordar durante o “serviço”, é uma maçada! O gatuno tem de fazer valer os seus direitos, defender a liberdade, não perder o trabalho, e puxa da faca e... quase sempre acontece o que aconteceu à velha da mala de ouro da rua Goiás.
D parte do cavalheiro que recebe a visita, é sempre melhor estar no mais pesado do seu sono: o gatuno faz o serviço e vai, sem mais estrago. É sabido mesmo o caso de um rapaz nada valente que estava na cama, acordadinho da Silva, quando um rapinante lhe entrou sorrateiramente pelo quarto, pé ante pé... A vítima tomou logo a acertadíssima providência de fingir que estava dormindo – e assistir mudo e quedo à operação do outro que lhe levava tudo. Ao fim do serviço, quando o outro já ia embora, já tinha mesmo saído a porta, ele, o roubado, deitando um olho indagador fora das cobertas, animou-se a dizer, com voz tímida:
– Boa noite, seu gatuno.
Por isso essa idéia do aviso pelo telefone é excelente. Os tímidos tomarão a providência de... não estarem em casa.


Gazeta de Notícias, 8 de março de 1917.