terça-feira, 10 de maio de 2016

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Urbano Duarte

HUMORISMOS


Um mal nunca vem sozinho, reza o adágio.
Outro tanto sucede com as carteiras. Vou explicar a asserção.
Um dos meus amigos íntimos nunca havia usado carteira, e isso por diferentes motivos.
Primeiro: a carteira seria para ele puro objeto de luxo, visto não ter o que guardar dentro. Costumava meter a sua fortuna no bolso das calças, até o dia 10; na algibeira do colete, do dia 10 ao 20; no buraco de um dente molar, do dia 20 ao fim do mês.
Eis que chega de fora um amigo íntimo do meu amigo íntimo, e presenteia-o com uma bela e original carteira.
Um alegrão! Passou por todas as emoções da estreia de uma carteira, e aproveita-se de qualquer ensejo para exibir o preciso utensílio aos olhos dos circunstantes, principalmente daqueles que não possuíam tal objeto.
Ao vê-lo passar de mão em mão, que divino prazer não fruía meu amigo, lendo nos seus olhos o ciúme, a inveja, a raiva, a ironia, o despeito profundo que sempre desperta nos corações bem ou mal formados a contemplação de um bonito presente que eles, os corações mal ou bem formados, não receberam!
Muito bem.
Ainda não se havia escoado a lua de mel com a linda carteira, quando, por ocasião de um festival para o qual fora especialmente convidado, o meu amigo recebe de mimo outra carteira.
Não era feia, não; porém o seu coração já estava ocupado pela primeira, e também o seu bolso.
Guardou-a na gaveta, enquanto excogitava gravemente que destino haveria de dar-lhe.
Entretanto há outra festa análoga à primeira, ele comparece como representante de certa corporação e...... tome carteira!
O meu amigo começou a desconfiar que aquilo era motejo da sorte ou então debique do destino.
Pensou em vender as duas últimas carteiras, a fim de meter o produto dentro da primeira; mas desistiu da ideia não só por natural escrúpulo, como também porque ninguém lhas quis comprar (esta razão é secundária, a principal foi o escrúpulo).
Deliberou então dá-las de presente, depois de se ter convencido de que não equivalia a fazer cortesia com chapéu alheio, visto como uma carteira minha não é um chapéu alheio.
(Quando um indivíduo discute consigo mesmo, e quer que o seu segundo eu concorde com o primeiro eu, tem sempre na algibeira um raciocínio específico igual ao precedente. A lógica do egoísmo foi formulada por M. Joseph Proudhomme na frase: C’est mon opinion et je la partage).
Resolveu pois, dar as duas carteiras de presente.
Mas a quem?
Muitas das pessoas a quem desejou mimosear já possuíam carteiras. Outras não usavam semelhante traste, por causa dos gatunos.
Um amigo, a quem em conversa manifestou a intenção de dar-lhe o presente , exclamou:
– Abrenúncio! Passa fora! É traste que nem pintado quero ver.
– Por que?
– Quando usava carteira perdi dois filhos, tive bexigas, diminuíram-me o ordenado e vivi sempre na quebradeira. Foi a minha macaca.
O homem desalentou.
Dias depois viu dois tinteiros sobre a mesa de um colega.
– Ah! que ideia! – murmurou ele – vou propor-lhe a troca de um tinteiro por duas carteiras.
E com muito jeito entabulou conversação, elogiou os tinteiros e perguntou-lhe:
– Usas carteira?
– Não. Tenho em casa meia dúzia delas. Queres uma?
Desta vez enfiou deveras e mandou o outro ao diabo, com um gesto indecoroso.
Por fim libertou-se das importunas remetendo-as pelo correio a dois cavalheiros do seu conhecimento, que os jornais participaram fazer anos.
Mas deixou de ir beber-lhes a cerveja aniversária, com receio do que lhe devolvessem as carteiras.


O Paiz, 11 de outubro de 1891.

domingo, 8 de maio de 2016

sexta-feira, 6 de maio de 2016

R. Manso

História de incêndio


Andando no Tesouro atrás de um papel urgente que, segundo promessas muito positivas, será despachado antes de 1915, fui dar à 9a seção da 37a sub-diretoria, onde parei para tomar fôlego. O escriturário que tinha de registrá-lo no 623° protocolo saíra para tomar café.
“Tomar café” no Tesouro, é um eufemismo que serve para indicar a ausência temporária ou vitalícia de um funcionário. É tão inveterada ali essa linguagem que, quando se pergunta por um empregado destacado para o Acre ou Mato Grosso, o colega responde mecanicamente: “Saiu. Foi tomar café”. Como eu sei, por experiência própria, que o café de um escriturário leva a ser bebido pelo menos três horas, procurei uma cadeira e sentei-me.
O chefe da seção, diante de uma torre de papéis, conversava com um conhecido sobre o incêndio da Imprensa Nacional:
– Foi uma pena... Foi um grande prejuízo; mas senti não estar presente para ver a fogueira. Eu tenho muito medo de incêndios. Sempre digo aqui no Tesouro: “No dia em que cair um cigarro aceso numa cesta de papéis, este edifício pega fogo, que não se salvarão nem os alicerces”. Mas eles facilitam. E os fósforos de cera? É um perigo ainda maior. Se eu fosse o Congresso votaria uma lei proibindo expressamente a entrada de fósforos de cera nas repartições públicas. Eu vou lhe contar um caso de que estive me lembrando hoje de manhã, quando li os jornais. Foi na Bahia. Eu estava servindo na Delegacia Fiscal; eu e o Macedo. Que é dele?...
Estendeu o pescoço, verificou que o escriturário não estava e, vendo-me sentado resignadamente, disse:
– O senhor espere um pouco. O Macedo foi tomar café e volta já.
E continuou dirigindo-se ao amigo:
– É pena que o Macedo não esteja presente para você perguntar-lhe. Eu não gosto de gabar-me, mas nesse dia fiz um ato de heroísmo. Eu estava no teatro, quando chegou um contínuo esbaforido e disse: “A Delegacia Fiscal está pegando fogo!” Saí a toda pressa, encontrei a porta já arrombada e rolos de fumo a subirem por uma janela que ficara aberta. O meu chefe chegou nesse momento e disse-me: “Guimarães, que desgraça! Vai-se o arquivo todo da Delegacia e os processos que estão na minha mesa! Papéis tão importantes, que eu dava meus dois braços para salvá-los”.
Eu disse: – Os bombeiros podem salvá-los.
Ele disse: – Não chegarão mais a tempo.
Eu disse: – Se houvesse por aqui uma escada...
Ele disse: – Arranja-se uma.
Eu disse: – Pois arranje!
O chefe deu ordens e logo apareceu um sujeito com uma escada no ombro. Mandei encostá-la à janela, por onde saía o fogo... Ora! É pena o Macedo não estar presente para confirmar... posta a escada, perguntei:
 – Está bem firme?
Ele disse: – Está!
Quando pus o pé no primeiro degrau, o chefe me segurou pelo braço e o Macedo pelo paletó:
– Guimarães, não faça isso! Você tem família! É um sacrifício inútil! Você não pode atravessar as chamas!... Não vá! Somos nós que pedimos!
Mas eu disse:
– Tenham paciência! É meu dever e hei de cumpri-lo!
Eles então largaram-me e disseram:
– Pois suba! Sua alma, sua palma!
Eu fiz o sinal da cruz (porque sou católico), mandei dois populares segurarem a escada, para ela não escorregar e...
Nesse momento chegava um escriturário, com uma pena atrás da orelha. O chefe de seção, contrafeito, suspendeu a narrativa e dirigiu-se ao recém-chegado:
– Oh Macedo, eu estava contando aqui o incêndio da Delegacia Fiscal da Bahia. Protocole o papel desse moço que está esperando há boa meia hora.
Desejando saber o resultado da história, perguntei ao chefe:
– E o senhor entrou a tempo de salvar os papéis?
Ele me encarou com rancor, relanceou os olhos sobre o Macedo e respondeu com aspereza:
– Pois o senhor me acha com cara de idiota, de entrar em um edifício em chamas?
Até agora não sei a que atribuir a irritação do Sr. Guimarães. Interroguei-o com toda a cortesia. Não era caso para ele me dar aquela resposta.


Gazeta de Notícias, 18 de setembro de 1911.