sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Urbano Duarte



A Semana, 4 de maio de 1895.

R. Manso

Formigas


Ontem, de manhã, encontrei o jardim invadido pelas formigas. Não sei por onde penetraram, porque a cancela estava fechada à chave. A invasão devia ter começado às primeiras horas da noite, porque já tinham construído casamatas, trincheiras e outras obras de defesa.
Minha primeira impressão foi de terror, porque eu sei (já o li numa revista inglesa), que as formigas no Brasil atacam cidades, expulsam os habitantes e destroem quanto encontram. Mas logo recuperei o sangue frio e me pus de observação.
Na escola primária aprendi a ler em um livro, subvencionado pelo Ministério da Agricultura das formigas. Hoje é que eu tenho a certeza disso, tal o número de patranhas que o livro continha sobre esses insetos. Dizia que elas são muito laboriosas e inteligentes, que armazenam víveres, que fazem guerras, que possuem vacas de leite, e até, se bem me lembro, que votam e que discutem política.
Pode ser que haja uma nação de formigas civilizadas, com todos esses progressos e mesmo uma Academia de Letras. Mas as formigas vermelhas, que invadiram meu jardim são muito atrasadas, são selvagens, estão ainda no período da pedra lascada.
Estive a reparar um esquadrão delas, que conduzia um palito. É notório que o palito é o objeto mais impróprio que há para alimentação. As formigas não sabiam disso e lá o iam levando, a trancos e barrancos, quando me resolvi a intervir, a embargar a tolice. Coloquei uma pedra em cima do palito, e fiquei observando.
Se um carregador fosse pela rua, arrastando um obelisco, e viesse um gigante e colocasse em cima o Pão de Açúcar, que faria ele, fosse numerado ou não? Verificando a impossibilidade de remover tal peso,lavaria as mãos, como Pilatos, ou iria dar parte à Polícia. As formigas não fizeram assim. continuaram a empregar toda a força; e o palito imóvel. A certo momento elas deixaram o trabalho, conferenciaram entre si, recriminando-se, com certeza, umas às outras, de estarem perturbando o serviço e depois de combinarem não sei o que, voltaram de novo à obra. Desta vez dividiram-se em dois grupos iguais, passaram cuspo nas mãos, firmaram os pés e começaram a puxar o palito em direções opostas. Aborrecido com tanta falta de senso, pus fim ao espetáculo com um piparote.
Estive observando outra formiga, à disparada, com um enorme grão de terra nas costas. Para que, não sei. Quando no caminho havia uma montanha, ou um precipício, em vez de contorná-los, o inseto seguia em linha reta. Em campo aberto, porém, dava voltas de quilômetros (quilômetros relativos), descrevia uma espiral ou um 8 e seguia, estonteada. A certa altura abandonou a carga e foi-se embora, sem ao menos olhar para trás. O procedimento dessa formiga é comparável ao do homem que tivesse que ir a pé, com um automóvel às costas, do Monroe ao Municipal, e, em vez de seguir diretamente, desse uma volta por Cascadura, galgando o morro de Santa Teresa; e quando estivesse de volta, largasse a carga à toa, na Avenida e fosse procurar outra loucura que fazer.
Mas o pior (e é esse o motivo do meu azedume contra as formigas) é que elas me estão minando a raiz de uma bela trepadeira. Logo que descobri, pedi conselhos aos vizinhos. Ensinaram-me, para afugentá-las, a pôr um pedaço de cânfora junto da planta. Quem tiver vontade de assistir a um pânico, atire um pedaço de cânfora entre formigas. Elas debandam para todos os lados, desorientadas, espavoridas. Depois de correrem como doidas, trinta ou quarenta centímetros, param, refletem e voltam; e ligam tanta importância à cânfora, como a um lápis. Outro vizinho aconselhou-me a naftalina; mas parece que foi por sarcasmo. Eu experimentei. Não há nada que as formigas apreciem tanto como a naftalina; são loucas por naftalina; é o seu perfume predileto. Empreguei outros processos, em vão. Por fim tive a ideia de pôr a descoberto a raiz da planta e regá-la com ácido fênico; mas eu mesmo, sem auxílio de ninguém, descobri, a tempo, que esse processo é idiota.
Depois de levar toda a manhã nesse trabalho, adquiri uma experiência muito útil. Conheço agora quais são os melhores meios de afugentar as formigas.
A minha trepadeira vai morrer, eu sei disso; não guardo ilusões a esse respeito. Mas um consolo me resta – O rei da Inglaterra é muito poderoso. O imperador da Alemanha é ainda mais. Pois, nem o imperador da Alemanha, nem o rei da Inglaterra são capazes de afugentar as formigas da raiz de uma trepadeira com cânfora, nem naftalina, nem mel com sublimado, nem água quente, nem infusão de fumo, nem água de sabão.


Gazeta de Notícias, 7 de dezembro de 1911.
Gazeta de Notícias, 17 de dezembro de 1911.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Urbano Duarte

HUMORISMOS


Todo homem tem o seu fraco.
O do Sr. Souza é festejar o dia dos seus anos com um sarau circuncisfláutico, onde corre à ufa um bastardinho “recebido diretamente”.
Na véspera ele envia aos jornais, pelo correio, uma nota assim concebida: “Completa mais um ano de existência o Ilm. Sr. J. F. de Souza, conceituado comerciante da nossa praça e sócio interessado da importante firma Pires & C.
A S. S. apresentamos as nossas congratulações”.
O noticiarista reduz tudo isto à forma lacônica – faz hoje anos o Sr. Fulano de tal – sem a quarta parte de um adjetivo amável, o que mete muita raiva ao Souza e fá-lo blaterar contra os jornais e dizer que nossa imprensa não se acha à altura da sua mixão xoxial.
A casa do anfitrião enche-se de gente, dança-se, brinca-se muito e mais de um casamento tem saído dali. O peru do Souza atrai gente de todos os pontos da cidade, porque ele conta amigos desde a Ponta do Caju até a Gávea.
Quanto ao belo sexo, há sempre lá um moçaime sacudido de encher o olho.
A data de aniversário do Sr. Souza é 22 de novembro.
Ora, neste dia, como sabem, houve na cidade pânico com a notícia de que a marinha se tinha revoltado contra a ditadura.
Os comensais costumeiros do Souza, todos burgueses pacatos e consertadores de tanque em dias de chinfrinada, não se atreveram a sair de noite para ir ao bródio.
 Moças, porém, não faltaram, porque há certas raparigas que, em fazendo intenção de dançar, dançam mesmo, embora tenham de passar por entre um regimento de carabineiros ou por cima de uma floresta de baionetas.
A casa do Souza estava, pois, cheia de moças, umas trinta e tantas, mas só havia meia dúzia de rapazes dançáveis... tudo o mais era bogodó (bogodó é a alcunha que elas dão aos homens casados, que não namoram e só vão a reuniões para jogar solo, conversar sobre debêntures (que ódio têm elas dos debêntures!) e discutir política). O Souza estava furioso com a política, que lhe entornara o caldo. E punha as mãos na cabeça, cochichando com a esposa:
– Como há de ser, Sra. D. Eufrásia? Seis rapazes para 30 moças! E todas estão doidas por dançar!
– Já dançam umas com as outras... Isto é uma vergonha, seu Souza!...
O anfitrião, já tonto, sem saber como remediar a coisa, dirigiu-se a um grupo de rapazes e pediu-lhes pelo amor de Deus que saíssem a passeio pelo bairro e recrutassem moços seus conhecidos, a fim de o salvarem dos apuros.
Eles obtemperaram aos seus desejos, tomaram os chapéus e começaram o recrutamento. Mas, patuscos de força, apanharam o pião na unha e começaram a arrebanhar todos os rapazes que encontraram, fossem ou não seus conhecidos. A fórmula adotada era esta:
– Ó colega em anos, o senhor quer engrossar um firribidi?
Alguns recusaram-se, julgando ser troça, porém muitos outros foram vestir-se às pressas e aceitaram o convite.
Quem escreve estas linhas teve a honra de ser um dos recrutados.
Ah! não lhes conto nada!
Cem anos que viva, não encontrarei outra igual!
A habitação do Souza encheu-se subitamente de uma caterva de rapazes, positivamente resolvidos a divertirem-se.
D. Eufrásia, coitada! ao ver aquela invasão de desconhecidos, fugiu para o quarto e trancou-se por dentro.
As moças entusiasmaram-se e caíram numa pândega, que ninguém mais as podia conter.
Só viemos a saber quem era o dono da casa à hora da ceia.
Um sujeito de cavanhaque fez uma saúde às belas qualidades do Sr. Souza e da sua Exma. Senhora, a comadre Eufrásia.
Todos nós, de copo em punho:
– Sr. Souza!
– Sr. Souza!
– Sr. Souza!
– Sr. Souza!
– E a comadre, onde está? perguntou o homem do cavanhaque.
O Souza gritou para dentro:
– Eufrásia!
E baixo, a um filhinho:
– Vai chamar a mamãe... anda!
D. Eufrásia estava no quarto, embezerrada, vermelha, sem querer sair.
Ao lado duas senhoras procuravam convencê-la:
– Vá, titia, isto é feio...
– Os moço estão chamando vosmecê, dindinha...
Ela batia com o pé, que não ia, que não ia, que não ia!
– Ó Sra. D. Eufrásia, berra o Souza, cá se reclama a sua presença!
Por fim a matrona se apresenta, muito encalistrada.
– Comadre, às suas belas qualidades! disse o cavanhaque.
E todos nós, de copo em punho:
– D. Eufrásia!
– D. Eufrásia!
– D. Eufrásia!
– D. Eufrásia!
– Comadre!
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O bastardinho recebido diretamente devia ter produzido o seu efeito, porque às 6 horas da manhã ainda se dançava, sem música, e no jardim da frente dois recrutados ressonavam ruidosamente, ressupinados na grama, tendo um deles a boca toda suja de fio d’ovos.
Parece que o Souza resolveu não fazer mais anos no dia 22 de novembro.


O Paiz, 13 de dezembro de 1891.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

R. Manso

À cata de uma pensão


O Abreu tendo de fechar a casa e enviar a família para fora (ele é adversário da cremação, não só “post-mortem”, como mesmo em vida), anda à procura de uma pensão para si. Encontrando no Paschoal um amigo solteiro e entendido no assunto, pediu-lhe informações. Esse rapaz reside atualmente em pensão.
– Boa? indagou o Abreu.
– Assim, assim. Como as outras.
– A sala de visitas é decente para se receber uma pessoa?
– Não tem sala de visitas.
– Onde se há de receber então uma senhora?
– Na sala de jantar.
– Quartos bons?
– De dois metros quadrados.
– Janela para a rua ou para a área?
– Nem para uma, nem para outra. Não tem janelas.
– Boa cama?
– Sim, conforme o ponto de vista em que você se colocar. Os colchões são excelentes para dormida de uma estatua; mas para corpo de carne, pode haver cousa melhor.
– Por que? Não é boa a crina?
– Não são de crina. São de flechas de foguete.
– Você tem certeza disso?
– Certeza não tenho. É a opinião da maioria dos pensionistas. Outros supõem que os colchões são cheios de varetas velhas de guarda-chuva.
– Mas os travesseiros, ao menos, serão de boa paina...
– Não são de paina; são de areia.
– Peneirada, fina?
– Não; saibro intermeado de calhaus.
– A que horas é a limpeza dos quartos?
– A hora nenhuma.
– Que fazem então os criados?
– Não há criados.
– Quem enche d’água o jarro?
– Não há jarros.
– Onde se lava então o rosto?
– Na cozinha.
– Talvez com o sabão de lavar panelas.
– Não. Na casa não há sabão. Não conhecem sabão. Uma vez deixei um pedaço, por descuido, na janela da sala de jantar. A dona da pensão viu-o, tomou-o com a ponta dos dedos, examinou e atirou à rua dizendo: Quem pôs aqui esta porcaria?
– A casa é sossegada?
– É menos das três da manhã até às oito. Durante esse tempo a dona da pensão martela os tamancos pelos corredores, sem parar.
– Quente?
– Lá isso é.
– Qual a temperatura?
– Não sei. O meu termômetro, que marcava só até 50°, explodiu na parede em princípio de novembro.
– Comida boa?
– O pão é regular; a farinha, a banana também. O resto não sei, porque nunca pude tragar.
– Muitos extraordinários?
– Tudo: café; chá; pão que exceda de meio; laranja, se tiver mais de nove gomos, um tostão por cada gomo de sobressalente; ovos quentes, quatro tostões cada um, se estiverem frescos, estando chocos a mulher faz uma diferença, cobra apenas trezentos réis; éter, para cheirar, 500 réis por cada dez minutos que durar a síncope...
– Durar o que?
– A síncope. Síncope de fome. Usa-se muito lá na pensão. O gás também paga-se à parte, passando aceso das 6 horas da tarde.
– E quando se leva um amigo para jantar, quanto se paga pela refeição?
– Não o sei. Nunca nenhum amigo meu foi lá jantar. Não tenho amigo nenhum idiota.
Mudou-se de assunto e o Abreu saiu pensativo. Até agora está à procura de uma pensão. Quando a encontrar, ele tomará um descanso de dois dias, e depois partirá à cata da fênix ou da mãe d’água.


Gazeta de Notícias, 30 de novembro de 1911.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Barão de Itararé

A Manha, 26 de setembro de 1930.

R. Manso

Como se leem jornais


Uma vez hospedei um conhecido de vista, do interior, o capitão Cristiano, que viera do sertão de Minas Novas ao Rio, cobrar uma antiga letra de 18$700, sem falar nos juros, que montavam a mais do dobro. O devedor, porém, não estava mais aqui. Supunha-se que andava pelo Espírito Santo. Antes de seguir-lhe no encalço, o capitão Cristiano resolveu demorar-se uma semana, para se refazer da viagem.
Homem excelente e muito versado em parentescos, o capitão descobriu que nós vínhamos a ser parentes por parte de uma D. Maria Francisca, que era prima em terceiro grau da avó dele Cristiano e cunhada do escrivão Manuel Antônio, o qual era por sua vez primo muito chegado, em quinto grau, ou talvez quarto, da mulher de um tio avô meu. Lembrei-lhe então que eu sabia de um parentesco entre nós mais estreito, e mais seguro, porque compreendia os dois ramos, paterno materno, e vinha a ser o fato, sem sombra de dúvida, de descendermos ambos, em linha reta, de Noé. Essa circunstância não havia ocorrido ao capitão Cristiano. E tão satisfeito ficou ele com a minha descoberta, que resolveu me favorecer com outra semana de hospedagem.
Ao fim de poucos dias eu conhecia toda a vida do capitão Cristiano. Era uma biografia simples, sem prólogo, pontada de episódios insignificantes: a sua nomeação para escrivão de paz, a compra de uma besta ruana, e duas facadas, fechando o segundo e terceiro capítulo. A certa altura havia um parêntese que, segundo minhas conjecturas, compreendia cinco anos, durante os quais não sei onde ele esteve, nem o que fez. Sei apenas que, nesse período ele aprendeu a fabricar cuités de chifre, cestas e peneiras de bambu e a odiar jurados.
Eu não gosto de ouvir a mesma história contada mais de três vezes. Quando o capitão começou a repetir a sua pela quarta, procurei um pretexto para levantar-me e dei-lhe um Jornal do Commercio, recomendando-lhe que lesse, que era muito interessante.
Retirei-me. Quando voltei a tarde, o capitão não tinha ainda saído do quarto. Na sala de jantar estava o queijo inteiro, em vez de meio, indício veemente de que o hóspede não merendara. Supondo-o doente, cheguei à porta do quarto. Silêncio. Por fim percebi um cicio. Juntei o ouvido à fechadura e percebi uma voz baixa a dizer:
– Quarenta e dois mil quinhentos e noventa e três; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e quatro; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e cinco; quarenta e dois mil quinhentos e noventa e seis; quarenta e dois mil seiscentos e dois; quarenta e dois mil...
Chamei o Anatólio e disse-lhe:
– O capitão está doido. Vá buscar uma corda e coloque-se a um lado da porta. A cozinheira fique do outro, com um pau de vassoura. Eu o faço sair do quarto e quando disser: “Agarre, Anatólio!” você agarre mesmo, e firme. Está ouvindo?
– Sim, senhor.
Assim se dispôs. Cheguei à porta, com o revólver engatilhado, e antes de bater, escutei. O capitão continuava no mesmo tom:
– Quarenta e dois mil seiscentos e vinte um; quarenta e dois mil seiscentos e vinte e dois; quarenta e dois mil seiscentos e vinte e...
Espiei pela fechadura. Ele estava com os cotovelos na mesa, a suar em bicas, lendo o Jornal do Commercio...
Para resumir. O caso foi o seguinte: O capitão recebeu o Jornal e estava embebido na leitura da página, que era a lista dos números de apólices, de não sei qual Estado, sorteadas para resgate.
Se houvesse voltado a página, encontraria telegramas, seção livre e artigos interessantes.
Todo o jornal é necessário saber-se ler. Para não acontecer como a um negociante de Goiás que assinou a Gazeta e daí a 15 dias escreveu:
“Sr. gerente – Ainda não acabei de ler o primeiro número que me chegou da Gazeta e já estou com a mesa cheia de outras. Peço para mandar o jornal mais espaçado, porque tenho outras cousas que fazer. Seu criado, obrigado, etc.”
Tudo é conveniente saber. Até ler jornais. Até mesmo escreve-los.


Gazeta de Notícias, 24 de novembro de 1911.