sexta-feira, 29 de maio de 2015

R. Manso - "Do meu diário"

Março, 22 – 7 h. m. – Posso formar hoje ideia da grande catástrofe descrita naquele versículo de Gênesis: “No ano seiscentos da vida de Noé romperam-se as fontes do grande abismo e as cataratas do céu se abriram”. A chuva que alimentou o dilúvio devia ser da mesma marca desta que está funcionando desde a madrugada. – Os tipos fluviais mais usados são: a “neblina”, cotada baixo e de pouca extração, a “chuva” propriamente dita, muito procurada pelos lavradores, e o “aguaceiro”, de pouco consumo. As bátegas diluvianas estavam retiradas do mercado, mas foram de novo lançadas o ano passado em Paris, experimentadas recentemente, com muito sucesso, na Bahia e inauguradas no Rio hoje, ao que parece.
10 h. m. – Continua o temporal. De quando em quando o ambiente escurece a tal ponto que, estendendo-se a mão, não se distingue os dedos. A intervalos, clareia um pouco. Deve haver qualquer cousa séria pelos lados do oceano, que não cessa de uivar e de bramir desde manhã. A água sobe dous palmos por hora. A última sondagem, no jardim, acusa quatro pés de profundidade. Até agora estou em jejum natural. A cozinheira, que dorme fora, não pode vir reassumir o seu posto, por falta de uma lancha. Desde 9 horas hasteei um sinal de socorro, pedindo víveres, com urgência. O padeiro partiu em meu auxílio, mas naufragou a dez metros da minha porta. Vou oficiar ao ministro do Interior pedindo que condecore o seu cadáver com uma medalha humanitária.
1 h. t. – A situação agrava-se. Faltaram-me hoje os jornais, o que aumenta a minha aflição. Em torno de mim é tudo desolação e tristeza. A duodécima e última galinha acaba de perecer afogada. No galinheiro, o ganso é o único prisioneiro vivo, mas dentro de duas horas recobrará a liberdade por cima da cerca. – Acabo de descobrir um tratamento excelente para a anorexia. Consiste em o paciente levantar-se às 7 horas da manhã e permanecer até uma hora da tarde, fazendo cruzes na boca, sem provar um gole de café. – O Anatólio me chama, em gritos de socorro. Vou ver o que há..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  ..  .. Não houve nada. Foi apenas a mala do Anatólio que, encontrando aberta a porta do porão, levantou ferros e partiu rebocando uma mesa de pinho. Neste momento estão navegando, rumo do sul, com tanta segurança como se fossem comandadas pelo João Cândido. – Estamos insulados sem probabilidade de salvação. A água sobe de momento a momento. Mandei aplicar uma escada à chaminé da cozinha; são mais quatro ou cinco metros, isto é, mais quatro ou cinco horas de vida que poderemos disputar à inundação.
4 h. t. – A minha fome passou do primeiro ao segundo grau. O mesmo acontece ao Anatólio, que já apresenta sintomas inquietadores. Procurei acalmá-lo, mostrando-lhe que possuímos quatro pernas e quatro braços disponíveis, o que quer dizer – víveres para oito dias (e ração farta), se a situação continuar grave. Tirei à sorte qual o membro que deve ser consumido em primeiro lugar, e saiu o n. 5, isto é, o braço direito do Anatólio.Comutei a pena para o braço esquerdo, que é mais dispensável. O Anatólio acendeu o fogo por suas próprias mãos, o que me fez vir uma lágrima aos olhos, lembrando-me o sacrifício de Isaac, filho de Abraão...
7 h. t. – Estamos salvos! Um barco, à matroca, o “Albatroz”, veio dar nas águas do meu jardim, que são particulares. Declarei a incursão um caso de pirataria e procedi à captura. Arrecadei toda a munição de boca (menos o barril de aguardente), e assinei o respectivo termo no livro de bordo. O “Albatroz” leva à Gazeta esta página do meu diário, com a incumbência de pedir socorro para a população de Copacabana. O Sr. ministro da Marinha pode mandar o “S. Paulo” pela rua Gustavo Sampaio, e o “Minas Gerais” pela rua Barata Ribeiro. Não há risco de encalhe. A água dá calado bastante, mesmo para o... “Barroso”.

Gazeta de Notícias, 23 de março de 1911.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

R. Manso - "Singularidades de Copacabana"

Copacabana é o arrabalde mais atraente do Rio atual. Antigamente o privilégio pertencia à Tijuca, há dez anos atrás cabia a Botafogo, daqui a mais dez anos passará à Vila Isabel ou a Cascadura ou a outro bairro qualquer porque “a ninguém é dado prever o que há de suceder no dia de amanhã” como diz o Eclesiastes. Mas por ora Copacabana tem a palma das excelências e das excentricidades.
Por toda a extensão da capital, de Botafogo a Cascadura, os proprietários são exigentes; os de Copacabana se contentam com uma renda de trinta por cento. Fiéis ao provérbio: “Casa quanto caiba; dinheiro quanto haja”, não constroem prédios largos, o que é muito agradável aos criados, principalmente aos incumbidos do arranjo e varredura. Os dormitórios, porém, tem espaço suficiente para um leito ou mesmo para dous (se forem de boneca).
Para variar as tabuletas dos bondes, o bairro foi submetido a uma divisão tripartida: Leme, Copacabana e Ipanema; mas a rua de Copacabana corta de lado a lado o Leme, a rua Ipanema é no centro de Copacabana e a rua G. Caipora não sei onde é, nem desejo saber.
Em toda a parte chove de cima para baixo, ou de baixo pra cima (no caso dos repuxos e dos gêiseres). Em Copacabana a chuva é horizontal. Vale a pena ver, num dia de temporal, grossas cordas de chuva acompanhando o bonde desde a Igrejinha até o túnel, sem poderem penetrar; ou a ducha permanente que tomam os passageiros, se o carro leva direção oposta. Por isso as casas ali deviam ter o teto ao lado e a fachada por cima, embora os arquitetos teimem em fazer o contrário.
Em outros lugares, geralmente, o dia é turbulento e a noite tranqüila, porque Deus fez a luz para o trabalho e as trevas para o sono ou para o jogo. Há até a frase feita: “silêncio da noite”, que empregamos comumente e que corresponde ao “silêncio noturno” dos poetas. Em Copacabana sucede o inverso. O dia é quieto e à meia-noite começa a ronda dos automóveis com os respectivos estampidos, buzinas e cornetas. O morador bisonho acorda em sobressalto e supõe que se está realizando um ensaio geral para derrubar de novo as muralhas de Jericó.
A palavra “trabalho” desperta a idéia de movimento, rendimento, atividade. Não, porém, em Copacabana. Há ali uma obra que se está fazendo desde a abertura do bairro e que há de continuar por duzentos ou trezentos anos ainda, se não for por quatrocentos. O serviço chama-se oficialmente "calçamento" mas podia se chamar “opodeldoque” ou “metempsicose” ou ter qualquer outro nome, que nenhum deles seria menos próprio do que o dado pela Prefeitura. O calceteiro acomoda três paralelepípedos no carrinho de mão, para transportar ao lado oposto da rua. Se nesse momento se precisar de qualquer cousa na cidade, pode-se mandar uma tartaruga, ou, na falta, um cágado, que o anfíbio vem, dá o recado, volta sem se açodar e encontra o calceteiro, com os paralelepípedos, um metro adiante. É a solução, há tanto tempo procurada, do problema: Realizar a menor quantidade de trabalho no maior tempo possível.
Deus deu ao morador de Copacabana os banhos de mar à porta e ao mesmo tempo a prudência de não usar deles. De quando em quando um temerário desce à praia, vestido de flanela e afronta as ondas. Toma o primeiro banho, mas não toma o segundo. A razão desse fato eu não sei. Só os tubarões e cachalotes é que poderão conhecer.
Copacabana foi feita por Deus, não há dúvida; mas é superintendida pelo diabo. Esse também é um ponto líquido.

Gazeta de Notícias, 27 de março de 1911.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Barão de Itararé

A Manha, 20 de junho de 1931.

Urbano Duarte

Quero, preciso absolutamente ser um homem célebre.
Alguns amigos aconselham-me que me faça mequetrefar com biografia, transcrevendo esta nos a pedido do Jornal.
Outros preferem o Correio da Europa, por ser folha de além-mar e bem impressa. Mas o Correio costuma dar aos seus retratos um ar arrogante, bigode retorcido e cabeça atirada para trás, à moda de quem está desafiando as estrelas; como sou essencialmente modesto, desejo que no meu semblante transpareça esta bela qualidade.
Depois, não gosto daquelas biografias do Correio. Tudo no superlativo, todos os adjetivos em íssimo! O leitor maligno pode supor que aquilo é de encomenda.
Também figurar de calunga no Diário do Comércio é que não me serve. Não há nada que mais comprometa a glória nascente de um homem do que um retrato manqué. Prefiro viver na obscuridade, a ser lançado pelo Diário com cara bexigosa, cancro no queixo, óculos pretos e nariz comido.
Houve quem me afirmasse que um processo infalível para se pôr o nome em vedeta, caminho da celebridade, era apanhar uma descompostura do Sr. Sílvio Romero, crítico pavoroso, que chama de patife e de bigorrilha a quem não concordar com ele em que o neo-criticismo alemão é a modalidade do racionalismo incontroverso, que o animismo de um espiritualismo base do positivismo comtista e miguelimista introduziu no cientificismo do germanismo.
Tomei o conselho.
Mas o crítico não se mexeu.
Atirei-lhe a última das injúrias: chamei-o de Sólvio Rimero e de Rímio Solvério, porém sem resultado. O homem não me deu importância.
Mudei de rumo.
Escrevi uma série de artigos homeopáticos sobre política e salubridade pública, como o Dr. M. M. de Carvalho, mas suponho que ninguém os leu.
Fiz-me sebastianista furioso, vociferava nas esquinas contra a atual ordem das coisas, a ver se concitava a atenção pública. Esperava todos os dias ver chegar à minha casa um soldado de cavalaria, pra-pa-tá pra-pa-tá, com ordem de prisão.
Nada. E até ouvi um histórico dizer-me: você, que sempre foi bom republicano... (!!)
Escrevi um romance, compus diversas polcas e lundus, inventei um novo processo para descascar arroz, fiz um rolo no Eldorado, meti-me a discutir literatura às duas da madrugada em gabinete particular, tudo em pura perda.
Continuei a ser um ilustre desconhecido.
Vou fazer uma última tentativa: escrever uma peça que comece por G, como: Gatunos, Grude e Grilos (1).
Se a pateada não e arrancar da obscuridade, então é porque decididamente não nasci para vintém.

O Paiz, 13 de abril de 1891.





(1) O Grude e Os Grilos foram peças de 1891 que desagradaram em cheio.