terça-feira, 28 de julho de 2020

João Foca

Fui encontrar os três de palestra no cais Pharoux, naquele jardinete à beira-mar, plantado. Estavam sentados, à sombra, em um daqueles bancos propícios que a Municipalidade ali mandou pôr para gáudio do público quando os soldados de polícia  em ronda não tomam conta deles.
Pois estavam. Era de manhã e eu andava matando o tempo. Como houvesse ainda um lugar vago no banco, tomei conta dele e comecei a prestar atenção à conversa.
Os interlocutores eram o Zé Estrela, catraieiro valente, e o Marcolino, antigo imperial marinheiro hoje crioulo do ganho, e Unha de Aço, vagabundo célebre, cabra sacudido no pé, destorcido como nenhum para dar uma cocada ou para dar uma navalhada - “guardar uma raiva na gaveta”, como se diz em língua da flor da minha gente.
ZÉ ESTRELA – Diz você, seu charuto, que hoje é feriado...
MARCOLINO – Oralilas... Feriado até à meia noite...
ZÉ – Mas que santo é? Eu cá não me alembra nenhum que faça anos hoje...
UNHA DE AÇO – Não é dia santo de santo; é da República...
ZÉ – Só se é isso... Mas afinal qual é a festa de hoje?
MARC. – Eu cá não sei... sei que é festa...
UNHA – Diz que é por causa da tomada da Bastilha...
ZÉ – Da Bastilha? Não conheço...
MARC. – Nem eu...
UNHA – (dando-se importância) É lá um negócio da guerra do Paraguai.
MARC. – Pois dessa não sabia... É que não foi coisa de mar, não foi combate naval, que esses eu conheço todos. Deixei de ser imperial, mais ainda sou patesca... Há de ser combate de terra, coisa dos tarimbeiros...
UNHA – É de terra, sim. Não vê que a Bastilha era o lugar onde o Lopes estava escondido...
MARC. – A furna do bicho...
UNHA – Isso... Vai os brasileiros sentiram o cheiro do tal de Lopes e deram em cima que não foi vida... Foi um saragaço dos dianhos, que na dita Bastilha tinha soldado que fedia. O Lopes não era arara e andava sempre com as costas quentes... Não, que diabo é ele e pancada não faz graça pra ninguém rir!
ZÉ – E afinal?
UNHA – Afinal os brasileiros, que eram bãozãos, meteram a cara direto, tomaram a Bastilha...
MARC. – E o Lopes?
UNHA – Ora, o Lopes! Tomaram também o Lopes...
ZÉ – Bem feito!
MARC. – O que me faz espécie é que no tempo da Monarquia não era feriado essa tal de Bastilha...
UNHA – Naturavelmente como tinham sido os da Monarquia que tinham tomado ela, não queriam que dissessem que eles se festejavam a si mesmos...
ZÉ – Então são os republicanos que festejam a história dos outros...
UNHA – Não sei bem disso; não estou ao par...
ZÉ – (que é piadista) Ó raio, então és tal qual como o câmbio...
UNHA – Que câmbio, seu Zé? Eu cá não gosto de lambanças que eu não entendo...
ZÉ – Não é nada de mal, homem de Deus... É que o câmbio é uma cousa que nunca está ao par...
MARC. – Eu sei o que é...É um sujeito que está sempre ali na rua da Candelária, nos bancos...
ZÉ – Você está sonhando, ó charuto?
Marc. – Você é que está bestando, seu estranja... O câmbio anda sempre por ali...
ZÉ – Ora vá comer formigas...
MARC. – Você pensa que isso é saque? Juro por Deus! Quando eu estou por ali a ver se cavo carretos, ouço sempre aqueles sujeitos dizerem: “Vou ver o Câmbio”. E entram nos bancos... Ja vê que... Tenho ouvido isso até de ingleses e alemãos...
ZÉ – Quando digo que você está sonhando... Você lá entende o que os alemães dizem, ó seu pataqueiro!
UNHA – Entender, pode entender... Você não sabe que aquele estrangeiro que eles falam é só de malandragem...
ZÉ – De malandragem?
UNHA – Sim, criatura. Quando eles começam a trocar língua, sabe? Quando falam aquela mixórdia não estão dizendo nada, é só pra enganar os nacionais. A gente ouve aquilo e vai na onda: pensa que eles estavam conversando. Mentira só; quando eles querem entender-se falam em português.
MARC. – Qual!
UNHA – Por Deus! Eu tenho visto, posso garantir que é assim. A mim é que não me embrulham eles.
ZÉ – Ora deixe-se disso, homem...
UNHA – É o que lhe digo... Então se falassem mesmo aquela língua eles morriam de fome quando chegassem aqui, sem saber patavina da nossa?
MARC. – Há isso...
UNHA – (entusiasmado) E por que é que haviam de falar outra? Porque são da Europa? Portugal também diz que é na Europa e os portugueses falam brasileiro... Aí está você pra exemplo, seu Zé.
ZÉ – Perdão... Há uma diferença: os brasileiros é que falam português.
UNHA – Uma ova!
ZÉ – Digo-lha eu que é assim. Pois se fomos nós que descobrimos isto aqui assim...
UNHA – Você é doido, homem... Nem diga mais nada que já está dando nojo, criatura. Foram vocês que descobriram! Ora deixe-me rir.
ZÉ – Fomos, ora essa... Foi o Pedro Álvares Cabral!
UNHA – Logo quem. O Pedro Álvares Cabral.
MARC. – O mais não discuto, seu Zé, mas o Pedro Álvares não podia ser, que não tinha idade pra isso. Não tinha não. Pois se eu conheço a viúva dele, uma gorda, de preto. Ainda noutro dia ela embarcou pra Europa e fui eu que fiz o carreto das bagagens. Já vê que pra ter uma viúva assim, não podia ter sido ele, que o Rio de Janeiro é velho...
UNHA – Tá vendo?
O argumento era esmagador. O Zé da Estrela não ousou protestar...

João Foca. “Como se... conta a história”. Jornal do Brasil, 15 de julho de 1904.