sexta-feira, 31 de julho de 2015

R. Manso - "Papagaios"

Eis o que me dizia o Abreu.
Há poucos dias um papagaio causou tal desaguisado no seio de certa família suburbana, que o caso foi acabar na polícia. Entre os leitores de tal notícia muitos provavelmente não acreditaram que tivesse, realmente, sido a ave o pomo da discórdia. Outros, habituados à linguagem literária e simbólica dos noticiários modernos, julgaram que o repórter empregara a palavra papagaio em vez de seu sinônimo – deputado. Mas não foi. Tratava-se de um desses parladores comuns que custam 20$000 de uma só vez e não dos outros que pagamos por prestações de 75$000, como nos clubes, e que nunca acabamos de pagar.
Eu sei, de ciência própria, que os papagaios, direta ou indiretamente, causam às vezes transtornos sérios. Um amigo meu, freqüentador de uma família eriçada de moças casadoiras, perguntado um dia se não tencionava tomar estado, respondeu que andara pensando nisso, as resolvera afinal comprar um papagaio, por ficar mais barato.
O enterro se realizou no dia seguinte.
O caso que se deu comigo, há dous anos, andou desvirtuado nos jornais. Aproveito o ensejo para retificá-lo. Foi o seguinte. O quitandeiro, ao vender-me o papagaio, garantiu que ele “repetia tudo quanto ouvia”. Nessas condições, por 50$000 era barato e paguei sem regatear. Tive de modificar o regime de casa e proibi que se lesse em voz alta o Diário do Congresso, com receio de que o louro aprendesse certos trechos. Abstive-me, com sacrifício, de praguejar durante uma semana. Ao fim desse tempo notei que o animal não dizia uma frase, uma palavra; nem ao menos “apoiado” ele sabia repetir. Levei-o ao vendedor:
– O senhor não me garantiu que este papagaio repete tudo quanto ouve?
– Garanti e garanto.
– Como é que em oito dias ele não falou ainda uma só palavra?
– Porque não ouviu nenhuma...
– Pois se eu lhe afirmo que tenha passado horas e horas a ensinar-lhe, a ler-lhe em voz alta, a falar-lhe, a cantar-lhe...
– Acredito perfeitamente; mas o papagaio não ouviu.
– O senhor tem coragem de me dizer isso?...
– Sim senhor; porque ele é surdo...
O delegado achou excessivo que eu respondesse com a bengala de brejaúba. Na sua opinião era suficiente um bastão de cerejeira. E mandou lavrar o flagrante.
Felizmente o juiz decidiu a meu favor, frisando que “ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei” e, não havendo texto legal que me obrigasse taxativamente a fender a cabeça do quitandeiro com a bengala de cereja ou de outra qualquer madeira em particular, eu não era passível de pena.
Os papagaios (uns e outros) causam transtornos sérios.


Gazeta de Notícias, 20 de maio de 1911.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

R. Manso - "A jornada de Tetuão"

A valorosa façanha castelhana, não longe dos muros de Tetuão, está tendenciosamente descorada e diminuída no telegrama do Jornal do Commercio, de ontem. O Sr. Luiz Gomes há de estabelecer a verdade, com sobranceria, lavando a sua testada. Antes, porém, do “escreve-nos”, julgo-me pessoalmente obrigado a intervir na questão. E faço-o por um dever de família, porque tenho uma prima, cujas cunhadas se chamam Carmen Dolores e Dulce Consuelo. Vou, pois, transcrever o telegrama, corrigido e completado segundo o texto autêntico.
“Londres, 16 – Notícias de Tetuão narram a história da grande vitória ganha pelos espanhóis, em luta contra as tribos Anghera, em Marrocos. A jornada foi a seguinte. Um mouro, conduzindo uma vara de quinhentos porcos, pertencentes a um espanhol, que vive em Tetuão, assustado com a aparição repentina dos soldados espanhóis, tocou-os (os porcos, não os soldados) o mais vivamente que poude, indo os animais abrigar-se em um lugar rodeado de plantações de cortiça, onde, durante a noite, estranhando a pousada (e provavelmente a ceia; porque se o fruto da cortiça é, segundo supomos, a rolha de garrafa, pode-se gabar de ser a fruta mais insípida que existe na terra, depois da carambola) não cessaram (eles, os porcos) de dar mostras do seu descontentamento, lançando ao ar desabalados grunhidos.
Imediatamente o comandante espanhol reuniu o seu estado-maior para deliberar. Um oficial prudente observou que o inimigo se achava em tal estado de excitação, como demonstrava pelos rugidos, que seria temerário atacá-lo naquelas circunstâncias. Debatida a questão, ficou resolvido o ataque. O comandante chamou a um canto dous oficiais amigos, e disse-lhes:
– O caso é sério. Precisamos estar preparados para morrer. Eu, como chefe da expedição, devo prever tudo e não deixar nada para última hora. No caso de ser varado por uma bala, pretendo soltar esta frase: “Muero por la libertad!” Acham boa?
– Acho, comandante. Mas seria, talvez, mais adequada, mais bem sonante a palavra “Patria” somente.
– Não senhor! Um alferes pode morrer com uma palavra só, mas a morte de um general obriga a frases, uma ou duas. O senhor não conhece a História?
– Para conciliar as cousas – propôs o outro oficial – o Sr. comandante pode firmar-se no seguinte: “Muero por la libertad e por la patria!”
Escolhida essa frase, tratou-se de colocar em posição de combate os 5000 soldados da coluna. A um grunhido mais forte dos inimigos, as forças espanholas enviaram um delegado para reclamar certo fornecimento do comandante. O emissário fez o pedido em voz baixa.
– Não posso atender! respondeu o comandante.
– Mas, Sr. comandante...
– Não posso! Já disse! As que há na arrecadação não chegam para os oficiais. Se servem calças de brim...
– Servem.
Dentro em pouco rompeu a fuzilaria. Troou a artilharia. Os inimigos se dispersaram na maior desordem. A estrondosa vitória foi comunicada aos governos estrangeiros”.

_______

Essa epopéia excede à Ilíada e as proezas de D. Quixote. Ájax, quando destroçou o rebanho dos gregos, estava louco furioso, por não ter conseguido as armas de Aquiles. O engenhoso fidalgo da Mancha também nunca esteve em juízo perfeito. Além disso, (e eu sei que desta declaração podem me vir dissabores) não acredito na existência de Ájax, nem de D. Quixote.
A batalha de Tetuão, ao contrário, é uma verdade histórica, como prova a baixa do preço do toucinho em toda a costa africana de Dakar a Juez.


Gazeta de Notícias, 18 de maio de 1911.