segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Urbano Duarte

Urbano Duarte de Oliveira (1885-1902). Utilizava na seção "Humorismos” d’O Paiz o pseudônimo de J. Guerra.



Bom assunto para uma monografia, nesta quadra duplamente febril que atravessamos, é o seguinte: Psicologia da adulação.
Os filósofos aí encontrarão fértil tema para cogitações profundas sobre a natureza humana, e os literatos poderão emoldura-los nas mais arredondadas frases. Isto no caso de ainda haver algum filósofo ou literato que não esteja também incorporando: – porquanto atualmente no Rio de Janeiro só conheço três espécies de gente: os que incorporaram, os que estão incorporando e os que pretendem incorporar. Há mais incorporadores do que havia comendadores.
Como dizia, magnífico assunto é a psicologia da adulação.
O padre Vieira consigna mil estratagemas e processos na sua arte de furtar; pois um tratado sobre a arte de adular deve registrar mil e um sistemas diferentes.
Nos tempos da... (esqueci-me do adjetivo... Ah! agora me lembro!) da ominosa monarquia (ominosa não, nefanda é mais energético) da nefanda monarquia, naquelas eras sinistras e execráveis mergulhadas na noite caliginosa da tirania e da corrupção (pausa)... Naquela pavorosa quadra da nossa vida política!!! durante a qual!!! todos os caracteres apodreceram!!! durante a qual!!! a liberdade era um sonho de loucos!!! durante a qual!!! a moralidade administrativa era uma burla, os governos eram sindicatos, o direito e a justiça apanágio dos poderosos!!! durante a qual!!! (conserto a gola e limpo o suor) prendia-se um pobre homem por ter furtado um queijo!!! processava-se outro por haver falsificado uma firma!!! demitia-se um escriturário só por escrever hoje sem h!!!... (Diabo! Com esta minha mania de fazer discurso, já não sei o que queria dizer) Ah! cá está o fio.
Naqueles tempos adulava-se muito, mas adulava-se mal.
Com a mudança de regime, a arte tomou novos moldes e progrediu assombrosamente, como tudo mais. Muito progresso e também muita ordem. O adulador de raça sabe fazer as coisas com discrição, com astúcia, e chega ao seu fim com uma precisão matemática. Toma por alvo o amor próprio do seu graúdo ou ricaço, e espera com heróica paciência até vê-lo rendido às blandícias. Nada o afugenta, nada o perturba, nada o desanima. A um gesto de repulsa que equivale a um pontapé moral, ele responde com um sorriso de agradecimento.
No dia seguinte, para se vingar, envia aos a pedido uma loa entusiástica às cem virtudes do seu alvo, concluindo por pedir desculpa se ofende a sua proverbial modéstia. O artigo é anônimo. O alvo fica intrigado por saber qual o bom amigo que de vez em quando gasta a sua meia pataca para o elogiar.
Mas o adulador de raça não se acusa, diz que ignora e pede mesmo às redações para mantê-lo no mais rigoroso incógnito. Deseja que o alvo o descubra por si mesmo, depois, a fim de as suas meias patacas de elogio se transformem em contos de réis de gratidão.
E garanto-lhes que o conseguem sempre.
Há um anexim que diz: ama-se a adulação e despreza-se o adulador. É falso. A verdade é que esquece-se a adulação e protege-se o adulador.
Li há tempos uma comédia em que certo personagem, um chicanista ou rato de foro, compra todos os barulhos, na esperança de apanhar bofetadas. Desde que lhe aplicam uma, ele puxa o papel selado, lavra termo, intima o agressor e processa-o por perdas e danos. E com isso sustenta mulher e filhos.
O adulador segue processo análogo. Quando o alvo o desfeiteia, ele beija-lhe a mão e põe a juros a bofetada moral.

O Paiz, 15 de março de 1891.

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