segunda-feira, 11 de abril de 2016

R. Manso

Um homem de coragem


Passava eu ontem, despreocupadamente, por uma rua da Lapa. Na volta de uma esquina topei com um sujeito grisalho, de óculos na testa e sem chapéu, a capturar transeuntes no meio da rua. A princípio supus que fosse um agente do Alexandre Braga, talvez o próprio Carnum do propagandista serôdio, empenhado em organizar auditório para a “matinée” do Palace Theatre. Nessa suposição planejava eu a defesa e ia já transferir o revólver do bolso da calça para o do casaco, quando tal sujeito me deitou a mão ao ombro:
– Está seguro!
– Mas como? por que? A Constituição, no art. 72, § 13, garante...
– Conversaremos depois, cavalheiro; agora é inútil. Queira entrar.
E me impeliu para uma sala tristonha, onde passeava um homem agitado, nervoso, entre quatro sujeitos soturnos, de cabeça baixa. Reinava um ambiente de má notícia. O grisalho tomou a palavra:
– Meus senhores, queiram desculpar-me se lhes causo algum transtorno. Mas trata-se de um caso urgente. Aqui o Sr. José Gomes Fortunato, conhecido pelo próprio, de mim tabelião, estando para praticar uma temeridade...
– Por dever profissional, atalhou o protagonista.
– Seja por dever ou não, é uma temeridade. Ninguém pode contestá-lo... Quer por isso fazer o seu testamento. E como faltavam testemunhas varões, maiores de 14 anos, tomei a liberdade de aprisioná-los. Dada esta explicação, vamos à obra.
Pela porta semicerrada entravam soluços e lamentações de senhoras, que choravam no aposento contíguo.
José Gomes, com perfeita coragem, apenas um temor imperceptível na voz, ditou do começo ao fim o seu testamento. Declarava que, se viesse a morrer, não culpassem de sua morte a ninguém. Pedia que não lhe atribuíssem intenção de suicídio, embora o ato que ia praticar pudesse deixar transparecer esse propósito. Que o impelia somente o dever profissional e nenhum outro motivo. Que, falecendo ele testador, como era muito provável, desejava que o sepultassem “in situ”, para não dar incômodo maior à família. Finalmente pedia que sobre a sua sepultura colocasse uma lousa singela, com esta simples inscrição – “Mártir do dever”.
Ao ditar estas últimas palavras, irromperam na sala três ou quatro senhoras desgrenhadas e uma dúzia de meninos e meninas, debulhados em lágrimas, que abraçaram o testador, se agarraram às suas pernas, exclamando ao mesmo tempo:
– Meu marido, tenha pena destas crianças!
– Papai, não vá morrer! Não vá papai!
– Meu genro, isto é um crime! Quem há de amparar estes orfãozinhos?
– Ah! Meu Deus!
– Que há de ser de nós...
Com o coração dilacerado, mal contendo uma lágrima inoportuna, que estava por um triz a pingar, dirigi-me à mesa para deixar a minha assinatura no testamento. Eu estava imaginando que o testador ia se prestar à inoculação do “bacillus virgula”, que produz o “cholera morbus” ou do bacilo de Nicolaier, que causa o tétano, para alguma experiência científica; mas entre as lamentações, ouvi a palavra aeroplano. Perguntei ao tabelião se o testador ia voar:
– Vai, respondeu ele. Vai em aeroplano do pico do Corcovado a Juiz de Fora, sem parar no caminho, mantendo-se sempre à altura de mil metros.
Isto disse o tabelião, alto. Depois, baixando a voz, falou-me ao ouvido:
– Essa história de aeroplano é forjada para não assustar demais a família. Na verdade o perigo é muito mais grave.
– Maior ainda?
– Sim senhor. Ele vai mesmo a Juiz de Fora, mas no expresso da Central.
Lancei um olhar de compaixão sobre aqueles dez órfãos prévios e saí.
Há muita gente temerária neste mundo...


Gazeta de Notícias, 10 de outubro de 1911.

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