sexta-feira, 12 de junho de 2015

R. Manso - "Cães soltos"

Pede-me o Abreu que escreva contra cães vadios e os automóveis, duas matérias de que não entendo. Se quisesse um artigo sobre contratos, unilaterais ou sinalagmáticos, ou sobre a “omelette au jambon”, ou outro assunto que constitua objeto de minhas cogitações ordinárias ser-me-ia fácil e agradável atender ao pedido. Todavia reproduzo a exposição de meu amigo, para que o leitor tire as conclusões. O Abreu começou:
“É muito interessante ver um indivíduo às voltas com um cão bravo. É um espetáculo muito divertido e digno de observação – salvo quando a vítima é o próprio observador. Essa restrição formulei-a hoje, de manhã. Saía eu com pressa para a cidade quando, à esquina, se postou um molosso, rosnando, rilhando os dentes e com os olhos cravados em mim. Eu não o conhecia, não sabia quem era e supus que me deixaria passar sem provocação. Adiantei-me dous passos e o animal tomou posição agressiva, rosnando mais alto. Quis corrompê-lo com blandícias, amaciei a voz, supliquei, implorei que me deixasse passar. Ele, firme, de olhar fuzilante. Dei outro passo e o cão rompeu as hostilidades acuando e latindo. Já os basbaques haviam formado um semicírculo, apreciando a cena. O cão investe contra mim. (Aplausos e palmas). Eu vibro a bengala, defendendo o espaço da minha frente. (Silêncio dos espectadores). O cão recrudesce o ataque. (Aplausos). Eu corro. (Palmas). Escorrego e caio. (Aplausos prolongados). Então fiz uma cousa que não serei capaz de repetir, ainda que viva cem anos. Apanhei um tijolo, atirei-o ao cão, a queima-roupa – e errei. (Palmas; aplausos delirantes).
Nesse momento surgiu não sei donde um sujeito de pescoço comprido (um pescoço ideal para a forca), com o bigode solidificado de pomada, e segurando o cão pela coleira me apostrofou:
– Então o senhor atira assim, sem mais nem menos, tijolos em cachorro alheio?
– Usei do meu direito. É um caso de legítima defesa, respondi levantando-me.
– Qual defesa! “Cão que ladra não morde”. Se é capaz, atire outro tijolo, ou uma pedra, ou uma bolinha de pão! Experimente!...
Não experimentei. Era eu só contra dous e tinha pressa de chegar ao escritório.Estive um instante indeciso mas, num intervalo lúcido, acenei a um automóvel que passava e parti para a cidade. Era um Fiat, de trinta cavalos, mas andaria mais se fosse de dous burros. Corre um ditado entre os choferes: “A lentidão é o meio mais rápido de esvaziar a bolsa do passageiro”. Esse rifão se aplica às viagens à hora; o dos táxi-autos é o seguinte: “A linha curva é o caminho mais curto para a fortuna”. O chofer, vendo minha perturbação, acumulou os dous adágios e me trouxe de Botafogo à Avenida fazendo um percurso de que me dá ideia este traçado:
Você reclame contra isso; ouviu? Não deixe também de frisar a diferença que há entre as relações do homem e do cão, aqui e nas outras cidades civilizadas; em S. Paulo, por exemplo.
Lá, quem possui um cão bravo prende-o; aqui, solta-o na rua.
Lá, se um cão morde, pede-se desculpa à vítima e repreende-se o animal; aqui acarinha-se o cão e descompõe-se a vítima.
Disse-me um amigo que escapei de uma pior. Se estivesse presente um membro da Sociedade Protetora dos Animais eu seria levado à Polícia para pagar uma multa e ver-me processar. Como eu objetasse que também sou animal, respondeu ele que sim, é exato, mas que não sou suficientemente irracional para gozar da proteção da Sociedade”.
Estão aí as queixas do Abreu. Não sei se ele exagera, nem se vale a pena incomodar a Prefeitura e a Polícia por tão pouco. Se não aparecer uma providência contra cães os soltos, o público pode se precaver de modo muito simples: basta que cada qual use pernas de pau.

Gazeta de Notícias, 10 de abril de 1911.

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