terça-feira, 9 de junho de 2015

R. Manso - "Fitas de arte"

O proprietário de cinematógrafo que recebe de um indivíduo dez tostões para diverti-lo e lhe impinge uma tragédia, em três bátegas de lágrimas, pratica um estelionato. Quem, após o trabalho do dia, penetra num forno de exibições, presume-se que deseja distrair-se. As fitas de Max Linder, Deed, Bigodinho, Totó, Tortollini agradam ao espectador, porque fazem rir os ingênuos e as crianças, isto é, quatro quintos da assistência; mas os dramalhões são um abuso. Não há quem resista a uma tragédia concentrada, propinada no escuro. Por menos sentimental que seja, o espectador vaza, em cinco minutos, as lágrimas acumuladas em cinco anos. Ora, para se amofinar, não é necessário despender dez tostões, sentar-se numa fração de cadeira e suportar uma temperatura que arrebentaria qualquer termômetro. Há outros meios, voluntários e involuntários, muitos deles gratuitos.
Apesar de inimigo de tragédias, fui ver ontem a destruição de Tróia. Não receei comover-me porque não conheci nenhum grego nem troiano, nem ao menos sei o lugar “ubi Troja fuit”.
A fita começa pelo jardim do palácio de Menelau, refrescado por um artístico repuxo e tufos de verdura. Ao fundo, um lampião de gás, apagado, para indicar que a cena se passa de dia. Menelau recebe um chamado qualquer e parte no seu carro de duas rodas, em trajos semelhantes aos que se vêm nas frisas do Partenon. Helena recolhe-se ao gineceu.
Eis que chega Páris, com urnas de presente, e aperta os galanteios em torno da filha de Tíndaro. Esta rende-se facilmente. A fita me resolveu assim uma dúvida. Heródoto, criticando a guerra de Tróia, insinua que foi uma loucura porque, diz ele, se é injustiça raptar mulher alheia, é evidente que elas não podem ser roubadas sem seu consentimento. Aparece Vênus, uma Vênus transparente, muito razoável, embora minha opinião não tenha valor, porque foi a única deusa que já vi. Lá se vão pelos ares, numa concha arrastada por cupidos, os adúlteros Páris e Helena. Nesse momento me veio um grande dó de Menelau. As lágrimas chegaram a subir aos olhos. Mas pensei comigo: “Estou me fazendo de tolo... Helena já andou às voltas com Proteu, no Egito; depois passou a Teseu, Menelau aceitou-a se objeção. Agora é a vez de Páris; virá a de Deífobo; o marido legítimo há de retomá-la, perdoar-lhe e ser idiotamente feliz. Pois que se arranjem!...”
Enquanto eu meditava essas cousas, os chefes gregos se reúnem, prestam o juramento cinematográfico, que consiste em levantar a mão direita e sacudir a cabeça, partem em busca de Helena e armam o cerco de Tróia. Não vi Aquiles e estranhei. Supus que ele estivesse recolhido à tenda, ruminando a sua cólera. Afinal apareceu o Pátroclo e foi liquidado num instante. Quando tal vi, estremeci: “Lá vem por aí o Aquiles, pensei, dando os urros furiosos que refere a Ilíada, e liquida já o Heitor e lhe arrasta o cadáver em torno dos muros”. Mas felizmente foi apenas o susto. Aquiles não apareceu. Os beligerantes travam o célebre combate junto dos muros, o do canto XII da Ilíada. Causa arrepios de terror a fúria dos troianos defendendo as muralhas e atirando de cima delas, sobre os gregos, formidáveis caixas de papelão.
A orquestra completa o quadro, fazendo estalar a fuzilaria e troar o canhão; mas só se ouvem os tiros, as peças ficam mascaradas. Os gregos desanimam, fingem a retirada e deixam, à mão, o célebre “cavalo de Tróia”. Eu andava enganado; julgava-o um pouco maior, capaz de conter muitos soldados armados como sugerem os versos de Virgílio:... Scandit fatalis machina muros feta armis, etc.
O resto sabe-se. Os gregos entraram e incendiaram a cidade, Menelau encontra Helena abraçada a Páris, que já devia estar morto nessa época, mata-o segunda vez, arrasta a adúltera para o seu navio, e continua o idílio interrompido pelos dez anos da guerra.
Antes assim. Acabou bem e houve poucas lágrimas. Ninguém teve razão de queixa.

Gazeta de Notícias, 7 de abril de 1911.

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