segunda-feira, 26 de outubro de 2015

R. Manso

O Abreu na Estrada de Ferro

O Abreu voltou encantado com o vale do Rio Doce. Nunca viu paisagem mais pitoresca, nem solo mais fértil.
– Em certos lugares a terra é tão fecunda, diz ele, que, plantando-se um prego, no dia seguinte nasce um poste de telégrafo. E as melancias? Só você vendo de que tamanho... Eles usam da polpa como alimento e da casca fazem canoas. Não dão barcos grandes; apenas para duas pessoas; mas servem.
Eu nunca surpreendi o Abreu numa patranha, mas tenho receio de que ele venha a ficar mentiroso, se continuar com essas histórias. Eis mais o que me disse:
– Como você sabe sou modesto, não gosto de chamar atenção para a minha pessoa. Por isso na viagem passei grandes contrariedades. Embarquei no rápido da Central, em um carro atulhado de passageiros. A certa altura, ao vir o condutor, puxei o meu bilhete e exibi-o. Notei logo que todos os olhos do vagão me examinavam. Atrás de mim armou-se mesmo uma discussão:
– É o conde Leal! dizia um.
– Não é! É o Gaffré! sustentava outro.
– Vocês estão muito enganados! atalhou um terceiro. Não é nem o Leal nem o Gaffré; esses dois eu conheço. Quem ele pode ser é o Penteado de S. Paulo.
Irritado, voltei-me para os contendores, e declarei meu nome, filiação, estado, naturalidade, profissão e residência. Eles se mostraram admirados e o que parecia mais considerável do grupo adiantou-se a dar-me explicações. Declarou-me que viajava na Central quase diariamente, havia cinco anos, e durante esse tempo só tinha visto pagar a passagem um inglês excêntrico; isto em 1907 ou 08. Como me vira exibindo o bilhete verde, tirara logo a conclusão de que eu era milionário. Em vista disso me pedia desculpas, etc. Nem por isso deixei de ser a notabilidade do comboio. Apontavam-me com o dedo e diziam uns aos outros: É aquele! Nas estações onde parava o trem, o condutor confabulava em voz baixa com um ou dois empregados, a notícia espalhava-se e, num instante, estavam todos se atropelando, aos empurrões na ânsia de me verem.
Em uma estação, já em Minas, entrou no carro um empregado de boné na mão e, com toda a cortesia me pediu um autógrafo. Pu-lo fora pela janela e a perseguição diminuiu um pouco. Mas durante toda a viagem (você sabe como o entusiasmo nacional se inflama facilmente) eu tive receio de encontrar a estação seguinte ornamentada com bambu e bananeiras, a banda de música na plataforma e um enorme dístico: “Salve! – Ao glorioso Abreu! – Que pagou sua passagem! – Na E. F.! – O povo agradecido!”.
Foi por esse motivo que resolvi sustar a excursão por trem de ferro e continuar a cavalo. A cavalo quer dizer: a burro. É um meio de condução muito bom, mas tem dois graves inconvenientes. O primeiro é que muitas pessoas não têm certa parte da anatomia suficientemente reforçada para resistir ao atrito do selim. O segundo é que nem todos têm altura bastante para enxergarem por cima das orelhas do macho. Quando trota de orelhas em pé, elas interceptam a paisagem.
Mas todos esses inconvenientes nada são comparados ao incômodo de viajar em estrada de ferro do Estado, com passagem comprada. Por isso na volta resolvi requisitar um passe, o qual me foi concedido imediatamente, por conta da verba destinada à: “Extinção de formigas”, do Ministério da Marinha.


Gazeta de Notícias, 30 de agosto de 1911.

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