quarta-feira, 2 de março de 2016

R. Manso

Falta de policiamento


Ontem, às nove horas da noite, eu acabava de fechar as janelas, tinha já posto em cada uma a sua tranca de ferro e ia começar a construir as barricadas (é necessário lembrar que resido em Copacabana), quando entrou o Anatólio, rindo a bandeiras despregadas.
– Que é isso Anatólio?
O copeiro não pôde responder, atacado de um frouxo de riso semelhante ao que nos acomete quando vemos um sujeito gordo escorregar do bonde, dar uma cambalhota no espaço e estatelar-se na calçada.
– Mas, Anatólio, que é isso?
O riso continuava, por mais que ele quisesse abafa-lo com as mãos ambas.
Para extinguir-lhe a hilaridade comecei a fazer considerações tristes.
 – Anatólio deixe disso. Lembre-se que você é órfão; que há de morrer; que de um momento para outro se poderá encontrar num catre de hospital, com peste bubônica...
O riso, continuando.
– Lembre-se que você não foi nomeado servente da Estatística; que perdeu seu chapéu novo, não há ainda quatro meses; que...
Num intervalo entre dois acessos, o Anatólio pôde falar. Vinha para casa, recolher-se, quando, na esquina foi agredido.
– Por quem, Anatólio?
– Pelo padeiro.
– Armado?
– Com um porrete e tanto!
– E atracaram-se?
– Atracar? Eu sou dessas cousas? Ele é que me pegou.
– Como?
– De cacete. Era cada paulada, cada queda que eu levava. Veja aqui minha cabeça.
E o Anatólio comprimia o ventre para não estourar de riso.
– E você acha graça nisso?
– Mas é que foi por engano. Ele supunha que estava desancando o açougueiro. Se o senhor visse a cara que ele fez quando descobriu o logro!...
– Anatólio, disse-lhe eu, não é honesto se apropriar a gente de cousas que não lhe pertençam. Você, o que devia fazer, era restituir as bordoadas, desde que viu que não tinha direito a elas. Enfim, o que passou está passado. Faça delas bom proveito. Mas não repita o fato.
O copeiro retirou-se meio catequizado e foi cuidar da cabeça.
E fiquei eu a meditar no seguinte – Eis aí os inconvenientes da falta de policiamento. Hoje está esse pobre açougueiro lesado numa “volée” de pau, a que tinha direito. Se quiser agora reaver as pauladas, há de tomar advogado, gastar dinheiro em custas, sujeitar-se a todas as maçadas de uma ação de reivindicação, e talvez perdê-la. Felizmente não é caso disso.
O Anatólio cometeu o delito de apropriação indébita, é verdade; fê-lo, porém, involuntariamente, sem dolo nem malícia. Demais, asas de pau há por aí em quantidade; é o que não falta no mercado. Mas, em vez das pauladas, o Anatólio podia ter-lhe roubado o relógio; e o resultado seria o mesmo.
Dizendo “falta de policiamento” eu exagero um pouco, porque andou por Copacabana um guarda civil, não há dois meses. Pessoas que nunca haviam saído do bairro correram para examinar o “civil”. O povo aglomerou-se e o guarda ficou quase prisioneiro, sem poder desvencilhar-se da multidão curiosa. (Isso era antes dos pauzinhos). Corre aí uma lenda de que os guardas que por lá andaram eram três, e que estavam em serviço. Não é exato: “eles” estavam a passeio e eram apenas “um” porque eu vi e contei pelos dedos.


Gazeta de Notícias, 9 de setembro de 1911.

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