quarta-feira, 5 de agosto de 2015

João Sem Telha

Pseudônimo de Wladimir Bernardes.

RESTOS DE VALENTIA

A guerra que o Brasil, há 60 anos passados, se viu obrigado a manter com o Paraguai, pelo largo espaço de um lustro, deu ocasião a que o soldado brasileiro conseguisse assombrar o mundo com a demonstração admirável da sua resistência orgânica, aliada a uma incomparável temeridade.
A história da nossa Pátria, nesse duro período, está ornada de passagens heróicas onde os louros das vitórias foram colhidos pelos nossos mais célebres cabos de guerra, manu propria, no terreno regado de sangue pela chuva da metralhadora.
Os nomes de Caxias, Jaceguay, Barroso, Osório e tantos outros, são títulos de glórias que a esponja do tempo jamais poderá apagar do quadro de honra do Brasil; pena é, porém, que a garra adunca da Morte já tenha arrastado ao silêncio do túmulo a quase totalidade desses valorosos veteranos que tanto souberam zelar pela integridade dos nossos direitos.
Eu, felizmente, ainda conto com a amizade terrena do venerando general Carneiro de Sá, um dos únicos sobreviventes da grande guerra e que fez toda a campanha, como tenente do Estado-Maior, adido à Corte desta heróica cidade de S. Sebastião.
O general Sá, que orça pelos seus nevados 80 anos, ainda possui a antiga firmeza de caráter e o seu porte marcial infunde aos paisanos um sincero sentimento de admiração e respeito, quando ele conta as suas façanhas, se bem que o general Pires Ferreira afiance que a espada do seu colega é, até hoje, mais virgem que o vinho do Rio Grande.
Eu, porém, não acredito em semelhantes intrigas e mentiralhas e ontem pude julgar mais uma vez da coragem indomável do velho general Carneiro.
Estávamos, ele e eu, na Avenida Rio Branco, esquina da Assembléia, conversando em animada palestra sobre a nova organização do Exército, defendendo eu a missão francesa que o general atacava, quando uma forte detonação se fez ouvir para os lados da rua S. José.
O general Carneiro, sustendo a relação de suas proezas que, dizia ele, não tinham sido aprendidas com o estrangeiro, empalideceu repentinamente e perguntou-me assustado:
– Isso foi tiro, João?
– Qual, general; apenas qualquer estouro de pneumático, tornei tranqüilizador.
– Ah! porque se fosse tiro eu ia sentir de perto o cheiro da pólvora, retruca o velho militar, com o peito inflado de ardor belicoso, continuando a recapitulação dos seus atos de heroísmo.
Passavam, porém, uns dez minutos que a detonação fora ouvida, quando de nós ambos se acercou o dr. Jaime de Vasconcelos, algum tanto nervoso.
– Viram a tentativa de assassínio ali na esquina da rua S. José? Um desordeiro detonou o revólver contra um soldado do Exército, mas a bala perdeu-se...
– A detonação de há pouco foi tiro mesmo? perguntei eu curioso.
– Foi, sustentou o dr. Jaime.
– E a bala perdeu-se? inquire o bravo militar.
– Perdeu-se...
– Pois então corram, “seus paisanos”, porque bala não traz letreiro, diz-nos o valente general, desabalando sozinho pela Avenida afora, rumo da Sete de Setembro com toda a celeridade que as suas pernas trôpegas lhe permitiam...
E o dr. Jaime e eu, afrontando o perigo, nos dirigimos sorridentes para o local do crime.


O Jornal, 23 de abril de 1920.

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