quinta-feira, 20 de agosto de 2015

João Sem Telha

A inteligência do Zequinha

Os pais, por um sentimento de orgulho amoroso muito desculpável, mal lhes nasce um filho, acostumam-se logo a gabar no petiz, certas qualidades e aptidões que as pessoas estranhas e o próprio inocentinho, ignorariam para todo o sempre, se não fossem prevenidos.
A perversão dos sentidos paternos é inevitável quando estes tratam de decifrar a seu modo, os monossílabos inconscientes e as atitudes despretensiosas do “rebento encantador” que, com o cérebro ainda dominado pelas exigências do estômago, só se interessa pela hora do “de mamar”. Para o ouvido maravilhado dos pais, o irrefletido “pá-pá-pá” balbuciado pela criancinha, tanto pode significar: “papai”, como “mamãe, tetéia, angu” ou biscoito. Tudo, para isso, depende de ocasião.
La Fontaine, na sua fábula da Águia e da Coruja mostrou a quanto pode chegar o grau de perturbação mental de uma mãe, quando fez o pássaro de Minerva, chamar de “mignons, beaux, bien faits et jolis” aos seus filhotes horrendos e repugnantes. E este mundo anda cheio de mães-corujas que, no entanto não deixam de querer ser “águias” quando debicam nas outras mães os mesmo defeitos e exagero que elas também possuem.
Mas o que os pais fazem mais empenho em exalçar para os estranhos, é a inteligência dos filhos. Quem já não ouviu um de três anos cantarolar “par secousses”, ajudado pelo papai ou pela mamãe, os versinhos da cantiga da época? Quem já não teve notícias pela boca de um pai extremoso das respostas inteligentes e ousadas que seu filho, de 4 anos lhe dá, a todos os instantes?
Ainda ontem, à tarde, viajava eu em um bonde do Ipanema em companhia do dr. Samuel Mosqueira, com destino a sua residência da rua N. S. de Copacabana onde pretendia jantar, quando na altura do Largo do Machado o dr. Samuel, como visse um garoto vendedor de jornais de uns 6 anos presumíveis insultando o condutor do bonde com palavras e gestos obscenos, começou a contar-me a precocidade do seu Zequinha, “enfant terrible” e inteligentíssimo de 5 anos incompletos.
– O meu Zequinha, disse-me o dr. Samuel, não é por seu meu filho, mas sempre foi muito adiantado. O que aquele “diabinho” faz é de causar pasmo a qualquer. Sem ninguém lhe ter ensinado, já sabe cantar todo o “Pois não” do Eduardo Pinto e toca com dois dedinhos o “Vem cá Bitu” do maestro Oswaldo Guerra!...
Na altura do Túnel Novo, o Zequinha já ligava palavras dissilábicas e raciocinava como gente grande, metendo o bedelho na conversa dos maiores.
Ao saltarmos no ninho da “águia”, ele de tão sabido já não ligava importância aos meninos da sua idade, sempre às voltas com seus livros de figuras.
Eu estava ansioso por conhecer, aos cinco anos, o provável substituto de Rui Barbosa na nossa mentalidade futura, e a maldita curiosidade levou-me a exigir a aparição do prodígio, mal transpus os umbrais do salão de visitas do dr. Samuel.
Este não se fez de rogado. Apertando um botão elétrico, chamou um criado e disse-lhe, com a voz cheia de orgulho: – Vá buscar o meu Zequinha...
Vastos minutos se passaram. A conversa já fugira para outro assunto, quando Madame Mosqueira, visivelmente contrariada, penetrou no salão, a reclamar:
– Samuel, vá ver o Zequinha... Está num berreiro dos diabos, há mais de quatro horas, lá no fundo do quintal!...
– Mas o que tem ele?!
– Nada; apenas abriu um buraco no terreno e, agora, quer por força carregá-lo cá pra dentro.
E eu, enquanto o casal ia à cata do teimoso, escapuli-me pelo portão, para que eles, a sós, saboreassem melhor a nova demonstração do intelecto do “prodígio”.


O Jornal, 6 de janeiro de 1920.

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