segunda-feira, 10 de agosto de 2015

R. Manso

A escola de Medicina em Belo Horizonte


Escreve-nos o Sr. Luís Gomes:
“Belo Horizonte, 2 de março
Sr. R. Manso – Saúde. Antes de entrar em assunto devo explicar-lhe que não sou o diretor da Estrada de Ferro Recife-Cádiz, nem o ministro português, nem o médico da Leopoldina que está soldando as pernas dos descarrilados da estação Muniz Freire, nem o juiz de direito do Rio Pardo, nem o fiscal de imposto de consumo do 4º distrito, nem nenhum dos seiscentos e quarenta e dous Luíses Gomes que vivem por aí. Eu sou o Luís Gomes primitivo e me considero o único legítimo. Os meus homônimos – e eles são legião – não direi que sejam apócrifos, mas são imitações.
Aclarado este ponto, acrescento que sou mineiro e que venho protestar contra a fundação da Escola de Medicina de Belo Horizonte.
Antigamente, nos bons tempos do Le Roy e da sangria, as doenças por cá eram poucas, mas chegavam para o gasto. Possuíamos a “barriga d’água”, o “nó nas tripas”, a “espinhela caída”, a “obstrução”, além da “catapora” e das “perebas” para uso das crianças. Os remédios eram também três ou quatro, e quando o doente não morria, sarava. Vieram os médicos e, em vez de descobrir novos remédios, começaram a inventar novas doenças. Uma das primeiras que arranjaram foi a neurastenia. No meu tempo o sujeito de maus bofes se chamava “malcriado” e curava-se a bordoadas. Hoje se chama neurastênico e trata-se a fosfatos. A doença de furtar era “ladroeira” e indicava o uso do relho; hoje é “cleptomania” e se lhe aplica a sugestão. O papo era “papo” mesmo, dado por Deus, e se tratava com uma pedra de sal e cuspo em jejum. Nunca vi nenhum curado com esse tratamento, mas ao menos sabia-se o remédio. Agora papo é “bócio” ou “esquizonotripaso não-sei-o-que”, quem o faz é o “barbeiro” e quem o desfaz não é ninguém, porque os médicos aboliram o nosso remédio e não arranjaram outro.
Antigamente morria-se pouco; hoje morre-se à toa, com a mesa de cabeceira cheia de remédios. Alguns atribuem isso à República que atrapalhou tudo. Outros, à de religião – o que eu não acredito porque meu pai era maçom e se não tivesse falecido, estava hoje com cento e vinte anos. Eu mesmo, que nunca tomei um purgante, estou com oitenta e cinco e daqui a quinze anos, com o favor de Deus, terei cem.
Por essas razões, acho que os médicos já são bastantes e que a Escola de Medicina de Belo Horizonte, além de inútil, é prejudicial. Os doutores já são demais; o de que precisamos é de lavradores.
A verdadeira medicina é a boa regra de vida. Para os que julguem a minha velhice robusta argumento mais convincente que dez seringas hipodérmicas, aí vão meus axiomas: “Dormir quanto queira; trabalhar quanto possa; comer quanto baste”.

Os bons convites antigos
antes de tudo se alçar,
eram para conversar
os parentes e os amigos
e não para arrebentar.

dizia o Sá de Miranda; e por isso não havia as “zangas de estômago”, nem as dispepsias, que apareceram com as ceatas modernas.
Enfim, Sr. R. Manso, peço-lhe que combata a Escola de Medicina de Belo Horizonte não com o argumento do Jornal do Commercio – falta de defuntos – porque isso os médicos arranjam; não haverá carestia. Os meus receios são os que já expus e outro, principal, que é ver nossas fazendas abandonadas. Dos meus cinqüenta e seis netos, 8 já são doutores em medicina, 5 em engenharia, 12 em leis, 15 em dentes e 9 em farmácia. Só consegui salvar para o trabalho 7, dos quais 4 abandonaram a charrua por empregos públicos. A todos os pais de família desta zona acontece a mesma infelicidade.
Se aparecer mais uma academia por aqui, quem ficará para lavrar a terra?
Peço-lhe responda ao seu
Ato. Vener. e Cr.
Luís Gomes

*   *   *

 Que hei de eu responder? Vou pensar sobre o caso, mas sem esperança. Da melhor vontade traspassarei esta meia coluna a quem achar solução ao angustioso problema do missivista.


Gazeta de Notícias, 5 de março de 1911.

Nenhum comentário:

Postar um comentário