sexta-feira, 21 de agosto de 2015

R. Manso

Um informante em apuros

Telegrama de ontem, de São Paulo: “Chegou aqui, domingo, o conselheiro Teixeira de Abreu, lente de direito civil ma Universidade de Coimbra, autor de obras jurídicas notáveis e que vem fazer o estudo do direito brasileiro”.
Se o conselheiro Teixeira atravessou o Atlântico para estudar, deste lado, o ramo jurídico de sua especialidade (como é de presumir-se), S. Ex. caiu no maior conto do vigário em que é possível a um homem cair durante a sua vida, ou em duas ou três vidas, mesmo que cada uma delas seja de trezentos anos.
A decepção que vai ter, ou que já teve, é dessas que levam um homem à cama (ou à rede, se ele for nortista), e exigem meses para convalescença.
O cavalheiro que for encarregado de servir de cicerone ao lente de Coimbra, poderá diminuir-lhe o abalo da decepção, se seguir o plano que indico. Basta observar-lhe as linhas gerais; os detalhes podem variar de acordo com as necessidades estratégicas.
 Enquanto estiver sendo trafegado pela Avenida Paulista, Parque da Antártica, Cantareira e outros arredores da cidade, o conselheiro não terá ocasião de indagar pelo nosso direito. O perigo é quando se acabarem os passeios. O conselheiro dirá mais ou menos o seguinte:
– Bem. Está tudo muito bonito. Dou sinceramente parabéns ao Brasil de possuir uma cidade como S. Paulo. No meu país não há cousa melhor...
– É modéstia de V. Ex.! deve interromper o cicerone.
– Não. Não é modéstia. Mas não vim ao Brasil como turista. Vim examinar, estudar o direito brasileiro...
– Com muito prazer! Acudirá o cicerone; e, fazendo-se de tolo: Direito penal, não?
– Não senhor...
–Ah, sei... Quer ver o nosso Direito Constitucional. Compreendo agora. A constituição brasileira não se acha em bom estado. Também já está servindo há vinte anos; é natural...
– Não é isso também que me interessa.
– Então é o Direito Comercial... Eu devia ter percebido a mais tempo que V. Ex. desejava ver o nosso Direito Comercial. Temos um código excelente. E grosso. E boas leis extravagantes sobre falência, notas promissórias e operações de câmbio. Vou mandar buscar um volume...
Esse jogo não pode continuar indefinidamente. Há de chegar a hora em que o conselheiro Teixeira de Abreu, se o cicerone não tiver escapulido antes, lhe dirá:
– O senhor está fugindo com o braço à seringa. Entendo muito bem. Toda a gente sabe que sou lente de Direito Civil em Portugal e o que quero ver é o Direito Civil brasileiro. Que é do seu código?
– Código? Ah, sim, o senhor alude ao Código Civil, não é? A Constituição imperial já se referia a ele. O conselheiro Nabuco andou com ele às voltas. Teixeira de Freitas organizou um trabalho importante. Houve depois o do Joaquim Felício, do Coelho Rodrigues, do Clóvis Beviláqua...
– Nada disso me importa. Quero saber da sua legislação civil – atual – Que é dela?
Esgotados os recursos, o cicerone poderá confessar, preparando o terreno, mastigando as palavras:
– Legislação civil? É verdade... o senhor não se assuste... a culpa não é nossa... estas cousas acontecem... nós... nós... nós... não a temos...
– Não a tem?... exclamará o conselheiro dando um salto na cadeira.
– Não, senhor. A que estamos usando está fora de moda, com as mangas curtas, apertada nas cavas. Foi-nos dada por D. Filipe, per graça de Deus Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar, em África senhor de Guiné, e da Conquista, Navegação, Comércio de Etiópia, Arábia, Pérsia, e da Índia e Brasil, no ano de Cristo de 1603.
– A ordenação Filipina!
– Exatamente, conselheiro.
Esta resposta dará o cicerone se for homem de sangue frio, pouco acessível à influência do sangue no rosto. No caso contrário, deverá fugir sem resposta. Porque é duro confessar a um português que o grosso do nosso direito civil consta de uma compilação lusitana, que foi julgada inadequada em 1642, condenada por Pombal em 1775, e atirada ao lixo, pelo seu país, há muitas décadas.


Gazeta de Notícias, 1 de junho de 1911.

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